Daiane Souza e Denise Porfírio | FCP     –    16/04/2012
No Brasil já foram identificadas cerca de 3.000 comunidades quilombolas. Destas, mais de 1.826 são certificadas pela Fundação Cultural Palmares (FCP), totalizando cerca de 2,2 milhões de pessoas.

Os exemplos de titulações concluídas devem-se à luta persistente dos movimentos em favor dos direitos quilombolas do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) – órgão da esfera federal, competente pela delimitação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes de quilombos.

A autodefinição de uma comunidade quilombola está diretamente ligada com a relação que esse grupo étnico possui com a terra, território, ancestralidade, tradições e práticas culturais. A importância da preservação desse patrimônio assegura a potencialização de sua capacidade autônoma, seu desenvolvimento econômico, etnodesenvolvimento e a garantia de seus direitos territoriais.

Ex-consultor-geral da Advocacia-Geral da União e atual consultor legislativo do Senado Federal, Ronaldo Jorge Araujo Vieira Júnior afirma que o Decreto nº 4.887/2003 é fundamental para consolidar o direito constitucionalmente assegurado aos remanescentes das comunidades de quilombos. E destaca que o documento é o “coração” da política pública de identificação e de demarcação de terras quilombolas.

A proteção dessas comunidades por meio da titulação de suas terras significa, ainda, a preservação da identidade nacional e também de importantes áreas de proteção ambiental, uma vez que são as comunidades tradicionais (indígenas e quilombolas) as maiores cuidadoras desses espaços.

Nesta terceira entrevista do especial Decreto 4887/2003 – constitucionalidade da regulamentação quilombola, o mestre em Direito e Estado avalia a legislação em defesa da população negra no país e reforça a importância da Constituição de 1988 por assegurar e entender que a terra, coletivamente apropriada, é a base da cultura desses povos tradicionais bem como espaços de preservação ambiental. Confira:

Ascom/FCP – No Brasil, os direitos quilombolas partem da certificação por autodefinição e da titulação do território até que se aprove o contrário. Diante disso, como avalia a importância do Decreto 4887/2003?
Vieira Jr – O Decreto nº 4.887/2003 é fundamental para dar concretude ao direito constitucionalmente assegurado aos remanescentes das comunidades de quilombos, visto que regulamenta o disposto no art. 68 do Ato das Disposição Constitucionais Transitórias (ADCT). A regra da autodefinição, alvo de inúmeras críticas, não é absoluta, submete-se à avaliação do Governo Federal, por intermédio da Fundação Palmares e é adequada com os tratados internacionais firmados pelo Brasil e que já integram o ordenamento jurídico nacional. O Decreto é o “coração” da política pública de identificação e de demarcação de terras aos remanescentes de quilombos, elaborado ainda no primeiro ano do Governo Lula, com o apoio de amplos segmentos da sociedade brasileira.

Ascom/FCP – O Decreto observa as normas da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Isto não o torna suficiente para cumprir o que é previsto pela Constituição?
Vieira Jr – Mais do que isto. O Governo Federal, desde o primeiro Governo do ex-Presidente Lula, adota as ferramentas disponíveis da interpretação constitucional para considerar que o art. 68 do ADCT é auto-aplicável e, portanto, não há que se falar na necessidade de lei para regulamentar o dispositivo constitucional. Basta que o Decreto fixe, como fixa, regras objetivas para identificação e demarcação de terras. Essa, inclusive, é a tese central defendida pelo Governo Federal na ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Democratas em face do Decreto 4.887/2003.

Ascom/FCP – A Proposta de Emenda Constitucional 215 propõe que passe a ser competência exclusiva do Congresso Nacional a aprovação da demarcação de “terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas” (artigo 49, inciso XVIII, acrescido) e quilombolas. Política e juridicamente, o que isso significa? 
Vieira Jr – A PEC 215, de 2000, transfere do Poder Executivo para o Congresso Nacional a competência para aprovar a demarcação das terras indígenas e, também, ratificar as terras já homologadas. Registre-se que a possibilidade de revisão das terras já demarcadas caiu com o parecer aprovado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados. A primeira impropriedade de natureza jurídico-constitucional, a meu ver, é atribuir competência eminentemente administrativa ao Poder Legislativo, o que definitivamente transborda de suas atribuições e viola o princípio da independência e harmonia dos Poderes. Politicamente, a proposta de alteração da Constituição Federal objetiva criar novas instâncias de deliberação sobre a matéria com o intuito de retardar ao máximo e, em algumas circunstâncias, até inviabilizar os procedimentos de demarcação de terras indígenas e quilombolas. Já existe legislação de referência suficiente sobre o tema e as balizas já estão colocadas, no caso das terras indígenas, pelo Supremo Tribunal Federal com o julgamento da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. A PEC nº 161, de 2007, foi apensada e trata da limitação ao exercício dos direitos dos quilombolas. Trata-se, enfim, de obstáculo à regularização fundiária no país e à garantia do exercício de direitos constitucionalmente assegurados aos índios e aos quilombolas.

Ascom/FCP – E quanto à consideração feita pelo Partido Democratas (DEM) de que somente após a aprovação legislativa é que as terras ocupadas por esses grupos sejam inalienáveis e indisponíveis (artigo 231, parágrafo 4º, alterado), como avalia? 
Vieira Jr – Essa interpretação somente será possível se aprovada a PEC 215, de 2000, e as outras que lhe estão apensadas. Todo o procedimento de demarcação somente estaria concluído com a aprovação do Congresso Nacional, mas o processo legislativo para aprovação de emenda à Constituição é bastante longo e complexo.

Ascom/FCP – O que pensa dos critérios e procedimentos vigentes para a demarcação de áreas indígenas e quilombolas? 
Vieira Jr – São critérios adequados, à luz da Constituição Federal e dos tratados internacionais firmados e incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro. Ressalto que o Governo Federal, ainda em 2008, preocupou-se em eliminar distorções existentes na sistemática em vigor à época. Então, por determinação do então Presidente Lula, a Advocacia-Geral da União coordenou um grupo de trabalho composto por inúmeros órgãos e entidades federais que possuíam interface com a questão e promoveu significativas alterações nas instruções normativas do INCRA e da Fundação Palmares. Estas interfaces detalhavam o procedimento de identificação e demarcação das terras das comunidades remanescentes de quilombos para tornar o procedimento mais objetivo e mais sustentável juridicamente. O coroamento de todo esse processo se deu com a consulta pública a representantes de trezentas comunidades remanescentes de quilombos, primeira realizada no Brasil com base na Convenção nº 169, da OIT. Nela, a despeito de todas as divergências e críticas, caminhou-se para uma maior racionalidade de todo o procedimento sem que fosse necessário alterar uma vírgula sequer do Decreto nº 4.887, de 2003.

Ascom/FCP – Quanto ao julgamento do Decreto 4887/2003 a ser realizado pelo Supremo Tribunal Federal no dia 18 de abril, existe previsão quanto ao que pode ser decidido?
Vieira Jr – O que posso afirmar é que o esforço de aprimoramento da legislação, de modo a torná-la mais objetiva e razoável, levado a cabo ainda em 2008 pelo Governo Federal é uma sinalização de que alterações e melhoramentos são sempre possíveis sem que, contudo, a essência dos direitos fundamentais seja afetada.

Ascom/FCP – Outras considerações que gostaria de fazer?
Vieira Jr – Quero parabenizar o esforço de mobilização que vem sendo feito pelo Governo Federal, em especial pela Fundação Cultural Palmares, em defesa do Decreto nº 4.887, de 2003, por acreditar que a sistemática ali posta transforma em realidade a intenção do constituinte de 1988 de assegurar a propriedade da terra aos remanescentes das comunidades de quilombos, e por entender que a terra, coletivamente apropriada, é a base da cultura desses povos tradicionais. O Brasil lhes deve respeito.