Amigos dos donos, inimigos dos demais

Por Petronio Portella Filho

O cão não é o melhor amigo do homem. É o melhor amigo do dono. Muitos possuem forte instinto territorial. Abanam o rabo para os que conhecem; mas latem e mostram os dentes de forma ameaçadora para os demais.

Cães de boa índole ou bem-treinados são adoráveis. Em compensação conheço gente que, vivendo em cidade grande, têm preferência por cães grandes e agressivos. Acham que o cão espanta ladrões. É verdade. Mas os donos não se dão conta de que tais feras, mesmo trancadas em casa, sentem o cheiro de tanseuntes que passam longe da casa e latem de forma ameaçadora. Ser ameaçado por latidos quando se está em área pública não é divertido. Quem sofre mordida de cão precisa tomar cinco doses de vacina antirrábica.

Cães barulhentos não podem morar em apartamentos. Quando morei na Asa Norte, o morador do apartamento ao lado tinha um cão que sentia meu cheiro no hall do elevador e fazia uma barulheira infernal. Era um latido alto, agressivo e meio assustador. Dava para ouvir as garras do cão arranhando a porta.

O fato era que eu e minha mulher nos sentíamos intrusos quanto entrávamos ou saíamos do nosso próprio apartamento. Era o cúmulo!

A convenção do condomínio tolerava cães desde que não perturbem os vizinhos. Reclamei com o síndico. O vizinho, em vez de se desculpar, ficou revoltado. Perguntou ao síndico quem tinha dedurado o animal. O síndico não respondeu. No final, ele teve que tirar de lá seu vira-lata, que aliás nunca nem cheguei a ver.

Pela reação do vizinho, percebi que o problema maior nem era o cão. Era a falta de civilidade do dono do cachorro.

Nos dias de hoje, caminho uma hora por dia por recomendação médica. Aprendi a evitar certas casas (mas não todas) que têm um cão agressivo que late alto e que fica se jogando contra o portão da casa tentando sair. Tenho também que olhar para o chão para não pisar nas fezes caninas que espalham pelas calçadas.

O fato é que, aqui em Brasília, graças aos inimigos do andarilho, as caminhadas deixam de ser relaxantes e se tornam, algumas vezes, estressantes.

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Documentários mostram que Ibaneis teve culpa pelo 8 de janeiro

Por Petronio Portella Filho

Assisti a três documentários sobre a intentona fascista de 8 de janeiro. O da CNN é o que explica melhor os antecedentes da tentativa de golpe e a organização dos acampamentos bolsonaristas. O documentário da Folha “Anatomia de um Ataque Golpista” foi o que denunciou com mais eloquência a tentativa de golpe. O documentário “A Democracia Resiste 8/1”, da Globo, foi meu favorito. Ele é quase um filme de suspense com final feliz.

Para minha surpresa, gostei de rever as imagens do 8 de janeiro. Os “patriotas” que invadiram as sedes dos três poderes ficaram embriagados pela ilusão de que tinham tomado o poder. Fizeram log in nas redes wi-fi do Senado, da Câmara e do Planalto. Depois bateram selfies praticando atos de vandalismo e os colocaram na Internet. Facilitaram ao máximo o trabalho da polícia.

As prisões começaram na noite do dia 8, mas a maioria dos golpistas foi se refugiar nos acampamentos em frente ao Quartel-General do Exército. O documentário da Globo relata bem a parte mais tensa do episódio, que foi o confronto que aconteceu na noite do dia 8. De um lado ficaram o interventor do DF Ricardo Cappelli, o Ministro da Justiça Flávio Dino e o Ministro da Defesa José Múcio. Do outro lado, os militares que defendiam os acampamentos golpistas.

O Comandante do Exército e o Comandante Militar do Planalto, conforme o documentário mostra, não permitiram a prisão dos golpistas na noite do dia 8. Houve uma tensa negociação entre a cúpula do governo Lula e os militares. A solução de consenso foi adiar as prisões para a manhã do dia 9.

A democracia esteve sob ameaça no 8 de janeiro principalmente por culpa de um personagem. O governador do DF, Ibaneis Rocha, foi omisso ou estava de conluio com os golpistas. A segurança da Esplanada era responsabilidade do governo do DF. O documentário mostra que a a PM do Ibaneis escoltou os golpistas, depois ficou se confraternizou com eles. Quem resistiu aos vândalos foram duas polícias legislativas, a da Câmara e a do Senado.

Nas horas que antecederam a invasão dos prédios, Ibaneis Rocha recebeu vários telefonemas e mensagens de alerta. Mas, em vez de agir, ficou mandando zaps garantindo a todos que a manifestação era pequena e era pacífica. A PM do Ibaneis repetiu o que tinha feito quatro semanas atrás, em 12 de dezembro, dia da diplomação de Lula. Ela ficou de braços cruzados enquanto golpistas depredavam patrimônio público e privado.

O governador Ibaneis Rocha havia confiado a Secretaria de Segurança Pública do DF a Anderson Torres, ex-Ministro da Justiça de Bolsonaro. Na casa de Anderson Torres, a política federal encontrou, na madrugada de 10 de janeiro, minuta de um decreto golpista inconstitucional cujo objetivo era reverter o resultado da eleição presidencial vencida por Lula.

O afastamento de Ibaneis e a intervenção federal no DF foram essenciais para a derrota dos golpistas. Anderson Torres, Secretário de Segurança Pública do DF e Fábio Augusto Vieira Comandante da PM do DF, foram presos. Mas o superior hierárquico deles, Ibaneis Rocha, não foi devidamente responsabilizado ainda.

O documentário da Globo destaca as declarações do Presidente Lula e do Ministro Alexandre de Moraes sobre a omissão ou conivência do governador do DF. Moraes observou que o exemplo da polícia do DF poderia ser imitado pelas PMs de outros estados. Lula diz no documentário que, tanto antes como depois da tentativa de golpe, Ibaneis foi cúmplice dos golpistas.

O Comandante Militar do Planalto, Gustavo Henrique Dutra de Menezes, e o Ministro do Exército, Júlio César de Arruda, não foram presos, mas pelo menos foram demitidos. O ex-presidente Jair Bolsonaro se tornou inelegível. Mas aquele que foi talvez o maior responsável pela intentona de 8 de janeiro permanece no poder. Ibaneis foi afastado no dia 8 de janeiro, mas voltou ao cargo 66 dias depois.

Segundo estimativa do Correio Brasiliense, os prejuízos do 8 de janeiro somaram 24 milhões de reais. Ibaneis é muito rico. Quando se candidatou à reeleição, declarou patrimônio de quase 80 milhões de reais. Ibaneis Rocha tem condições de responder patrimonialmente por parte dos prejuízos do 8 de janeiro.

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O arado torto dos quilombolas

Com 400 mil exemplares vendidos, Torto Arado é um fenômeno de vendas. Escrito por Itamar Vieira Júnior, um afrodescendente quase desconhecido, o livro foi publicado e premiado primeiro em Portugal, depois no Brasil. Ele recebeu cotação máxima, cinco estrelas, na Amazon Brasil.

É leitura essencial para entender quem são os quilombolas, embora a palavra praticamente não seja usada no livro. O autor procura narrar vidas, sem tinturas ideológicas. Só lá pela metade do livro, o autor menciona a cor da pele dos protagonistas. São negros retintos, descendentes de escravos, que vivem “de favor” em uma grande fazenda. São três os personagens principais: Zeca Chapéu Grande, líder religioso e curandeiro, e suas filhas Belonísia e Bibiana. São vidas interessantes e dignas, apesar da pobreza extrema.

A abolição da escravatura e as fugas de escravos deixaram muitos negros sem moradia e sem trabalho. Foram acolhidos por proprietários rurais que lhes ofereciam trabalho e o direito de construir casas de barro, sem alvenaria. Não recebiam salário e viviam daquilo que plantavam, dividindo parte da colheita com o dono da terra.

Os quilombolas da primeira geração sabiam o que era vagar sem eira nem beira. Eram analfabetos. Não recebiam salário, viviam em situação análoga à escravidão, mas se sentiam em dívida com os que os tinham acolhido. Só os da segunda geração aprenderam a ler e tomaram conhecimento dos direitos trabalhistas. Foi quando surgiu o conflito social. Começaram a lutar pelo direito à terra que cultivaram durante um século sem remuneração.

Torto Arado nem sempre é leitura leve. Há muita pobreza, sofrimento e injustiça. Só na terceira e última parte os personagens quilombolas conseguem justiça. O final é surpreendente e muito original, mas prefiro não entrar em detalhes para não estragar a surpresa. O fato é que o brasileiro deveria parar de se vangloriar de viver numa democracia racial e conhecer melhor a história do seu país.

O Brasil teve sua economia ligada ao trabalho escravo durante 388 anos (74% de sua história). Dois pesquisadores da Universidade de Cambridge, David Eltis e David Richardson, passaram 12 anos analisando os registros das 35 mil viagens de navios negreiros. Dos 12,5 milhões de africanos sequestrados, dez milhões sobreviveram, dos quais 5,8 milhões vieram para o Brasil. Portugueses e brasileiros foram os maiores traficantes de escravos da história. Além disso, o Brasil foi o maior importador de escravos e o último país das Américas a abolir a escravatura.

Torto Arado mostra que o drama dos afrodescendentes não terminou com a Lei Áurea. Eles saíram da escravidão para um tipo cruel de servidão. Felizmente as novas gerações têm lutado por seus direitos. O direito dos quilombolas à terra que ocuparam tem respaldo constitucional desde 1988. Nos termos do art. 68 da ADCT, “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.

Infelizmente, 34 anos mais tarde, o art. 68 da ADCT ainda não foi devidamente cumprido. O IBGE, através do Censo 2022, contou pela primeira vez a população quilombola do Brasil. São 1.327.208 pessoas, das quais apenas 62.859 (4,3% do total) residiam nos 147 territórios quilombolas oficialmente titulados.

Petronio Portella Filho

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O Arcabouço Fiscal em Perspectiva Histórica, por Petrônio Portella Filho

A PEC de Transição foi aprovada em 21/12/22 e se tornou a Emenda Constitucional nº 126. Ela determina em seu art. 6º que o “Teto” dos Gastos seja substituído por “regime fiscal sustentável” definido por projeto de lei complementar (PLP). Em 18 de abril, através do PLP 93/2023, o governo Lula entregou ao Congresso o chamado Arcabouço Fiscal (AF). Ele pôs fim a uma era em que a política fiscal brasileira foi marcada por fanatismo, mentiras e autoritarismo. Mas essa é uma história que precisa ser contada do início.

Era uma vez uma Presidente chamada Dilma Rousseff que foi derrubada, em 2016, por conspiração liderada por seu vice, Michel Temer. O vice, após assumir, deu giro de 180 graus na política econômica. Eleito por coligação liderada pelo Partido dos Trabalhadores, Temer destruiu direitos trabalhista que vigoravam desde 1943 (CLT). Não satisfeito, fez aprovar a Emenda Constitucional nº 95, que botou na Constituição Federal uma impostura chamada “Teto de Gastos”.

O “Teto” determinava que as Despesas Primárias (DP) fossem reajustadas apenas pelo IPCA, um indexador inadequado para agregados fiscais. Nos 20 anos anteriores à aprovação do “Teto”, a inflação medida pelo IPCA foi de 261%, enquanto a inflação do PIB (Deflator Implícito) somou 390%. A variação do PIB nominal durante o período chegou a 749%. Na época da votação da PEC elaborei exercício matemático mostrando que, se o “Teto” do Temer fosse aplicado nos 20 anos anteriores a 2016 (e tudo o mais permanecesse constante) as DP teriam encolhido de 19,9% do PIB em 1996 para 8,5% do PIB em 2015.

O “Teto” era, na verdade, um esmagador de gastos. Ele foi vendido ao Congresso Nacional com base em mentiras.

O Arcabouço Fiscal (AF) veio substituir a grande impostura. Sua principal virtude é ser democrático. O “Teto” do Temer, radical e autoritário, estava previsto para durar 20 anos, afetando total ou parcialmente seis mandatos presidenciais. E ele só poderia ser alterado por emenda constitucional.

O Arcabouço Fiscal, pelo contrário, faculta ao presidente eleito o direito de fixar, no início do mandato, por lei ordinária, os parâmetros fiscais para o próximo quadriênio. Cada presidente eleito vai definir seu arcabouço. O nome que se dá a isso é Democracia.

O Arcabouço Fiscal de Lula é centrista, nem desenvolvimentista, nem austericida. Ele propõe um ajustamento das contas do governo federal, que parte de um déficit primário de 0,5% do PIB em 2023 e, através de um ajustamento gradual, projeta um superávit de 1,0% do PIB no quarto ano do mandato. O histórico de Lula me leva a confiar na projeção. Durante seus oito anos de mandato, ele manteve superávit primário médio de 2,2% do PIB.

O superávit precisa ser inferior ao de 20 anos atrás. Lula precisa gastar para repor as redes de proteção social que Bolsonaro tentou destruir. Precisa realizar concursos públicos já que os ministérios foram despovoados. Precisa acabar com a fila de um milhão de pessoas no INSS. Precisa realizar investimentos. Precisa resgatar uma dívida social que aumentou muito nos últimos quatro ano.

O ajustamento fiscal irá se dar limitando o crescimento da Despesa Primária a 70% do aumento da Receita Primária durante quatro anos. O crescimento real da despesa primária deve ser de no mínimo 0,6% e no máximo de 2,5% a.a. As viúvas do Teto não gostaram da regra. Alegam que o Arcabouço Fiscal traz implícita a hipótese de “aumento da carga tributária”.

Na verdade, o crescimento da Receita Primária não exige aumento de alíquotas. Ele exige apenas a retomada do crescimento. Sempre que o PIB cresce, a Receita Tributária o acompanha. A relação é direta e é universal. O PIB do Brasil cresceu bem durante o governo Lula, em média, 4,1% ao ano. Mas esteve praticamente estagnado nos sete anos do pós-Impeachment (2016-2022), quanto cresceu em média 0,8% ao ano.

O AF do Lula cria um piso de 75 bilhões para os investimentos públicos, que pode receber (dois anos mais tarde) bônus de 25 bilhões se o superávit primário exceder a meta. Considerando que o PIB é de 10 trilhões e que o bônus será concedido dois anos mais tarde, os investimentos devem representar entre 0,75% e 1% do PIB no governo Lula. É muito pouco. O AF deveria ter excluído os investimentos públicos da regra que limita as despesas primárias (que só podem crescer no máximo 2,5% ao ano).

A Despesa nada mais é do que o outro lado da Receita. Para alguém faturar, alguém tem que gastar. Isso é um princípio contábil. O Produto Interno Bruto é calculado tanto pela soma das rendas quanto pela soma dos gastos.

Um país como o Brasil que cresceu a uma taxa média inferior a 1% ao ano nos últimos sete anos está com sua renda per capita estagnada. Tal país deveria estar discutindo um plano de desenvolvimento econômico, não regras de austeridade fiscal. Mas o Arcabouço Fiscal, ao contrário do Teto, pelo menos não impõe a redução dos gastos primários.

Entendo que o ajuste fiscal deva ser feito via aumento das Receitas (acompanhando o crescimento do PIB). Tal é o enfoque do Ministro Fernando Haddad. Ele demonstrou subserviência ao Banco Central bolsonarista ao não aumentar a meta de inflação, o que considero injustificável, dados os evidentes excessos da política monetária e o fato de que a legislação em vigor atribui ao Conselho Monetário Ncional (onde Lula tem maioria) tal prerrogativa. A economia brasileira está tendo que tolerar uma taxa de juros básica que é de longe a mais alta do mundo. Mas a abordagem fiscal do Ministro Haddad representa grande mudança em relação à mentalidade austericida dos governos Temer e Bolsonaro.

Petronio Portella Filho

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A Magia do Mercado de Passagens Aéreas

Tínhamos viajado pouco após a pandemia. Este ano a família fez quatro viagens aéreas e ficamos impressionados com o quanto a desregulação do setor afetou a qualidade e o preço do serviço. As passagens estão caríssimas. E os passageiros passaram a sofrer abusos inimagináveis.

Reservar lugar em um voo com antecedência se tornou algo arcaico. Depois que a “ineficiência do Estado” deu lugar à “magia do mercado”, a prática foi praticamente abolida. Hoje a reserva dura 24 horas, a não ser que a passagem seja quitada com antecedência.

Nem assim o passageiro é respeitado. Eu havia marcado e quitado, com meses de antecedência, cinco passagens no voo direto Brasília-Curitiba. Dias antes da viagem fui informado que o voo havia sido cancelado pela Gol. Eu e a família seríamos transferidos para outro voo, em outro horário, com escala em Congonhas e troca de avião.

A viagem aérea de duas horas foi esticada para seis horas. E teríamos que chegar ao balcão da empresa com duas horas e meia de antecedência. Moro em Brasília há cinco décadas e nunca tinha feito voo com escala para uma capital estadual. Se eles tivessem dito antes que o voo era com escala eu não teria comprado a passagem.

No dia da viagem, tivemos que levantar da cama às 4h30 da madrugada. Só fomos chegar ao resort, na cidade paranaense de Lapa, às 15h30. Teríamos perdido a hora do almoço, incluído no pacote, se o resort não tivesse aberto uma exceção para nós. Mas perdemos o transfer gratuito para a Lapinha. Tivemos que pagar 150 reais por pessoa pelo transporte do aeroporto ao resort.

Adivinhem se fomos indenizados pelo cancelamento do voo direto pela Gol.

Quando é o passageiro que não cumpre o combinado, a punição é draconiana. Ano passado perdemos um voo da Latam porque chegamos ao aeroporto 90 minutos antes do voo — que não era internacional. Era um voo para Maceió. Mas os tempos são outros. Hoje o passageiro que quiser despachar mala tem que pagar extra pela mala e se apresentar com duas horas e meia de antecedência. Perdemos o voo e parte substancial do que tínhamos pago. Se a passagem for adquirida com pontos Livelo e o cancelamento se der no dia da viagem, a multa é de 80%.

O mercado de passagens aéreas nacional é um oligopólio dividido entre três empresas: Azul, Gol e Latam. Juntas elas respondem por 98% do mercado, cada uma com participação de aproximadamente um terço. Antes o governo regulamentava o preço das passagens, o que, segundo um articulista da grande imprensa, gerava “ineficiências”.

Hoje o mercado é “eficiente”. As empresas fazem o que bem entendem e cobram o que bem entendem. A “eficiência do mercado” aumentou muito nos governos Temer e Bolsonaro, quando a ANAC, agência reguladora, praticamente deixou o oligopólio Latam-Gol-Azul se autoregular.

O oligopólio desregulado baixou os preços como os doutrinadores previam? A exclusão da mala do preço da passagem reduziu o preço para quem viaja sem mala?

Não baixou. Surpresa zero para mim. Vocês conhecem algum caso de oligopólio que tenha baixado os preços após ser desregulado? Conhecem algum caso de monopólio público privatizado que tenha baixado os preços? Existe rica literatura técnica sobre o assunto, e ela mostra que monopólios e oligopólios maximizam lucros aumentando os preços.

Um amigo gaúcho que mora na Europa ficou chocado com o preço da viagem de 40 minutos entre Porto Alegre e Florianópolis. Segundo ele, custou mais de quatro vezes o preço da viagem de quatro horas entre Londres e Biarritz (que ele compra quando visita os filhos).

Sou um passageiro das antigas. Gosto de reservar viagens falando com um ser humano. Ainda telefono para uma agência de turismo. A Flávia, meu contato da agência de turismo Link Tour, me informou que hoje os passageiros, além de pagar pelo despacho das malas, têm que pagar pela marcação dos lugares na aeronave. Ou seja, temos que pagar mais caro pelas passagens, ficamos mais tempo de castigo no aeroporto e temos que arcar com despesas não incluídas no preço inicial. Hoje os extras, que eram gratuitos, perfazem em média 20% do custo da passagem aérea.

Este é o capitalismo do Estado Mínimo que os ultraliberais — Jair Bolsonaro e Michel Temer — conseguiram nos impor, pelo menos em parte. E que Fernando Haddad tenta combater com timidez, pois ele morre de medo de ser acusado de populista pelos colunistas da grande imprensa.

Leio nos jornais que as empresas privadas brasileiras não desejam para si o liberalismo que apregoam. Em quase todos os setores, seus representantes estão mobilizadas para exigir subsídios e regalias do Estado. No caso das empresas aéreas, elas alegam estar tendo prejuízos em razão do encolhimento do mercado (que elas mesmas produziram, ao aumentar os preços). No fundo querem subsídios sem contrapartidas. Em vez de um Estado de Bem-Estar Social, elas querem um Estado de Bem-Estar Empresarial.

Quem melhor definiu o Estado Mínimo foi André Roncaglia, colunista da Folha: “o Estado mínimo dos neoliberais é o Estado máximo para o mínimo de pessoas.” Achei a definição perfeita. Vocês conhecem algum empresário amigo de Bolsonaro que não estava sonegando impostos e mamando nas tetas do governo?

Não foi este o capitalismo que conheci nos Estados Unidos quando morei lá. Residi nos EUA entre janeiro de 1980 e junho de 1982. Fiquei encantado com o quanto o capitalismo americano era regulamentado pelo Estado e inclusivo.

Em 1980, os trabalhadores americanos tinham estabilidade no emprego, os sindicatos eram fortes. Os consumidores eram respeitados. Franklin Roosevelt, o maior presidente americano da história, realizou nos anos 30 reformas de verdade, em defesa dos trabalhadores e combatendo os abusos do mercado. As reformas de Roosevelt deram início a quatro décadas de crescimento robusto, com estabilidade econômica e elevação dos salários.

Na verdade, a regulação dos oligopólios e monopólios antecedeu Roosevelt. Nos EUA, oligopólios e monopólios eram regulamentados pelo Estado desde o século XIX. Os tempos eram outros, os políticos eram menos reacionários. Até o partido Republicano era progressista. Richard Nixon se declarou keynesiano e, durante sua gestão, ampliou os direitos sociais.

Em 1981 teria início a gestão de Ronald Reagan, o primeiro de uma linhagem de mentirosos carismáticos que prometiam “tirar o Estado das costas do contribuinte”. No entanto, todos eles — Reagan, Thatcher, Pinochet, FHC, Temer e Bolsonaro — tornaram o padrão de crescimento mais lento e mais concentrador de renda. E, como cereja do bolo, todos eles aumentaram os déficits públicos e as dívidas públicas.

Os anos 80 foram um divisor de água. A doutrina da magia do mercado foi se tornando hegemônica. Desde então o crescimento econômico se tornou mais lento, mais concentrador de renda e mais propício a crises financeiras. A brutal concentração de renda foi tornando o Primeiro Mundo menos democrático. Os sindicatos foram perdendo espaço ano a ano.

As mudanças pós-1980 afetaram especialmente a América Latina, que era uma das regiões mais progressistas do pós-Guerra. Sob a influência formal ou informal do consenso de Washington, a região foi privatizando tudo e desregulando tudo. Hoje é uma das regiões mais decadentes do mundo. Brasil e México, dois tigres econômicos do pós-Guerra, foram transformados em tartarugas.

Meu desabafo fica por aqui. O mercado de passagens aéreas é um triste retrato do Brasil que nos foi legado pelos ultraliberais. A “magia” do mercado, se é que existe, não beneficia os “muggles” ou “trouxas”, que somos nós, trabalhadores e classe média. Ela só beneficia os poderosos, ou a turma do Voldemort.

Petronio Portella Filho

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