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A tramitação da ‘atualização’ do Código Civil (PL 4/2025) no Senado

 

 

Paulo Mohn

O Projeto de Lei (PL) nº 4, de 2025, de iniciativa do senador Rodrigo Pacheco (PSD/MG), que “dispõe sobre a atualização da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e da legislação correlata”, foi autuado em 31 de janeiro de 2025 e, em seguida, publicado. [1] Contudo, até o dia 25 de maio, permanece “aguardando despacho” do presidente do Senado, que, portanto, ainda não definiu: qual será o procedimento a ser seguido; e qual(is) a(s) comissão(ões) deverá(ão) analisá-lo.

Em virtude das controvérsias levantadas sobre o projeto, têm sido diversas as informações divulgadas sobre sua tramitação no Senado, algumas delas incompletas ou equivocadas. Assim, por exemplo, há reivindicação no sentido de que a proposição seja tratada como “projeto de código”, mas com tramitação “pelas comissões temáticas pertinentes”, o que são pedidos, pelo menos a princípio, regimentalmente incompatíveis entre si.

O fato é que é bastante importante distinguir se a proposição corresponde a uma (mera) alteração do Código Civil ou se ela deverá se enquadrar como um “projeto de código”. O procedimento a ser seguido é muito distinto, conforme cada uma dessas alternativas, segundo o Regimento Interno do Senado (Risf). Na primeira delas, a proposição tramitaria como os demais projetos de lei ordinária de autoria de senador. Na segunda, a proposição estaria sujeita a “disposições especiais”, em um rito especial disposto no Capítulo III do Título IX do Risf (artigo 374).

A ementa do projeto levaria, em um exame rápido, à primeira alternativa, pois ela explicita, como seu objeto, a “atualização” do Código Civil, aparentemente afastando-se da caracterização de uma reforma ou da elaboração de um novo código. Mas essa opção conduziria o projeto a ser apreciado apenas pelas comissões, dispensada a competência do plenário, salvo recurso de um décimo dos membros da Casa (artigo 58, § 2º, I, da Constituição) [2], no rito que o Senado denomina de “terminativo” (e a Câmara de “conclusivo”), pois assim tramitam os “projetos de lei ordinária de autoria de senador, ressalvados os projetos de código” (artigo 91, I, Risf). [3]

Projeto de código

Mas quatro fatores levam à maior possibilidade do segundo enquadramento, ou seja, de que a proposição seja classificada como “projeto de código”. Em primeiro lugar, a atualização promovida tem grande alcance, pois enseja reformulação de grande parte do código vigente, acrescenta matérias antes não veiculadas, além de alterar e revogar outras leis afins.

Segundo, porque o próprio Regimento Interno faz equivalência entre o “projeto de código [novo] ou sua reforma” (artigo 318, Risf). Terceiro, porque o projeto decorre de uma comissão de juristas, constituída com a finalidade de “apresentar (…) anteprojeto de lei para revisão e atualização” do Código Civil (artigo 374, parágrafo único, Risf). [4]

E, por último, porque há o precedente de uma comissão de juristas criada para modernização do Código de Defesa do Consumidor, que acabou até mesmo apresentando não um, mas três anteprojetos de lei, que se tornaram projetos de autoria formal do então presidente do Senado José Sarney, e foram todos despachados inicialmente com tramitação pelo rito especial do artigo 374 do Risf. [5]

Se ocorrer o enquadramento como “projeto de código”, a primeira providência da Presidência do Senado, em seguida ao despacho, será a designação de uma comissão temporária para seu estudo, composta por 11 membros titulares e igual número de membros suplentes, mediante indicação das lideranças (artigo 374, caput, Risf). Dessa forma, a princípio, o projeto não será objeto das comissões temáticas permanentes da Casa, salvo se houver — excepcionalmente — requerimento posterior aprovado pelo plenário (conforme casos precedentes) [6]. Inclusive, as proposições que alterem o código vigente, ou conexas ao tema, deverão ser apensadas e encaminhadas ao exame dessa comissão temporária (artigo 374, II).

A comissão elegerá, entre seus membros, um(a) presidente e um(a) vice-presidente. Serão então designados(as) um(a) relator(a) geral e quantos relatores(as) parciais quantos forem necessários (artigo 374, I, Risf). A discussão da matéria, quando de seu exame pelo colegiado, obedecerá a essa mesma divisão adotada na relatoria (artigo 374, VII).

Perante a comissão temporária, poderão ser oferecidas emendas, no prazo de 20 dias úteis (artigo 374, III). Essa é a única oportunidade regimental prevista para apresentação de emendas, por isso é aberta a todos(as) os(as) senadores(as), integrantes ou não da comissão temporária. Não há previsão regimental de prazo para emendas de plenário.

Prazos de análise

Os prazos estabelecidos para análise do PL pela comissão são exíguos, mas podem ser aumentados até o quádruplo, por deliberação do plenário (artigo 374, XVI), caracterizando-se como dilatórios. Eles serão suspensos durante o recesso e no período necessário à realização de audiências públicas e oitivas de ministros de Estado (artigo 118, §§ 3º e 4º, Risf).

Os(as) relatores(as) parciais têm prazo de dez dias úteis para encaminhar, ao(à) relator(a) geral, a conclusão de seus trabalhos (artigo 374, IV). Em seguida, o(a) relator(a) geral tem o prazo de cinco dias úteis para apresentar à comissão o seu parecer (relatório), que será publicado, seguindo-se mais cinco dias úteis para a comissão concluir o seu estudo e encaminhar à Mesa o parecer final sobre o projeto e as emendas (artigo 374, V e VI).

Produzido o parecer pela comissão temporária, e publicado este em avulso eletrônico, após interstício de três dias úteis, o projeto de código poderá ser incluído na ordem do dia do plenário (artigo 374, IX). Trata-se de prerrogativa do presidente do Senado (artigos 48, VI e 163, Risf), mas é costume que sejam ouvidas as lideranças para a formação da pauta das sessões. Curioso é que não há colégio de líderes formalmente estabelecido no Senado, mas são rotineiras as reuniões de líderes, das quais se extraem as matérias a serem designadas pelo Presidente para votação nas sessões.

A disposição regimental é de que o projeto de código seja incluído com exclusividade na ordem do dia (embora ela nem sempre seja atendida). Haverá um único turno de discussão e votação, com previsão de que a discussão, que se faz conjuntamente sobre o projeto e as emendas, ocorra em pelo menos três sessões deliberativas consecutivas (artigo 374, X e XI), que podem ser ordinárias ou extraordinárias.

Votação na comissão

Após a discussão, passa-se à votação, com a peculiaridade de que os destaques só poderão ser requeridos por líder, pelo relator geral ou por 20 senadores (artigo 374, XII). No Senado, os líderes partidários têm uma quota, conforme o tamanho da bancada, de destaques que independem de aprovação pelo plenário (artigo 312, parágrafo único, Risf). Os demais requerimentos de destaque devem ser submetidos à deliberação do plenário (artigos 312, caput e inciso II, Risf). As matérias destacadas serão votadas depois da matéria principal (artigo 314, III, Risf).

Tem havido manifestações contrárias a eventual apreciação com urgência do PL 4/2025. Caso enquadrado como projeto de código, considerando tratar-se de um procedimento especial, não parecem aplicáveis as hipóteses de urgência dispostas no artigo 336 do Risf. Não foi localizado precedente (em pesquisa não exaustiva). O que já ocorreu, para dar agilidade à apreciação de projeto de código, foi a realização de apenas uma sessão de discussão, na qual se realizou também a votação. Mas não a interrupção de análise da comissão temporária para envio do projeto de código para instrução e apreciação diretamente em plenário.

Cabe lembrar, por fim, que o Senado é a Casa iniciadora do PL 4/2025. Se aprovado, ele será encaminhado à revisão da Câmara dos Deputados, em um único turno de discussão e votação. Havendo emendas ou substitutivo ao projeto, ele retornará ao Senado, que terá a palavra final sobre as modificações propostas pela Casa revisora (artigo 65 da Constituição). Mas o procedimento na Câmara dos Deputados e a tramitação bicameral têm muitas outras nuances, que merecerão novas análises, se for o caso.

[1] Disponível aqui.

[2] O projeto seria apreciado em caráter terminativo pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (art. 101, II, “d”, Risf). Talvez, a critério do presidente, a matéria poderia ser distribuída também à Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, em virtude de dispositivos relacionados aos direitos de família, das mulheres, das crianças e adolescentes, dos idosos e pessoas com deficiência (art. 102-E, IV a VI).

[3] Curioso é que, uma das reivindicações mais frequentes, é que o projeto não possa ter regime de urgência. Ocorre que, no Senado, as proposições reservadas às competências terminativas das comissões não poderão ser apreciadas em regime de urgência, salvo se houver recurso, interposto por um décimo dos senadores, para sua apreciação pelo plenário (art. 336, parágrafo único, Risf). Essa disposição, contudo, tem sido contornada mediante manobras regimentais, como a apensação a um outro projeto de competência do plenário.

[4] Embora de iniciativa formal do Senador Rodrigo Pacheco, o PL 4/2025 tem origem em anteprojeto elaborado por Comissão de Juristas por ele constituída, quando exercia a Presidência do Senado Federal (Ato do Presidente do Senado Federal nº 11/2023). Informações aqui.

[5] Os anteprojetos foram convertidos nos Projetos de Lei nºs 281, 282 e 283, de 2012. O PLS 281/2012, sobre comércio eletrônico, foi aprovado no Senado e remetido à Câmara (PL 3514/2015); o PLS 282/2012, sobre ações coletivas, foi arquivado; e o PLS 283/2012, sobre o crédito ao consumidor e o superendividamento, resultou na Lei nº 14.181, de 01/07/2021.

[6] O envio a comissão permanente, após o parecer da comissão temporária, tem precedente na tramitação da Reforma do Código de Processo Penal (PLS 156/2009), na qual foi aprovado pelo plenário, em 17/12/2009, requerimento do Senador Pedro Simon para que houvesse também parecer da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ). Contudo, essa medida é excepcional (não foi adotada, por exemplo, na tramitação do novo Código de Processo Civil – PLS 166/2010) e poderia ensejar controvérsia, uma vez que a tramitação de código obedece a um procedimento legislativo especial. Tanto assim que, na tramitação de PECs (igualmente, um rito especial), não se admite envio a outra comissão que não a CCJ, em atenção ao disposto no art. 356 do Risf.

é doutor em Direito do Estado (USP), consultor jurídico, professor de processo legislativo, ex-consultor-geral legislativo e secretário-geral da Mesa adjunto no Senado e ex-chefe de assessoria parlamentar da Presidência do STF.

As opiniões emitidas e informações apresentadas são de exclusiva responsabilidade do/a autor/a e não refletem necessariamente a posição ou opinião da Alesfe.

Via Conjur – Publicação originalmente publicada em: https://www.conjur.com.br/2025-mai-28/a-tramitacao-da-atualizacao-do-codigo-civil-pl-4-2025-no-senado/

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Gripe Aviária: desafios sanitários, resposta estatal e soberania alimentar

Entenda como o Brasil está reagindo à gripe aviária e por que proteger as galinhas vai muito além da produção de frango — é uma questão de saúde, economia e soberania alimentar

Por: Luiz Rodrigues

A Gripe Aviária de Alta Patogenicidade, oficialmente denominada Influenza Aviária de Alta Patogenicidade (IAAP), é uma doença viral altamente contagiosa que afeta aves domésticas e silvestres, e que eventualmente pode infectar mamíferos, inclusive seres humanos. Causada por cepas do vírus influenza tipo A, a IAAP provoca sintomas graves e alta mortalidade nas aves, resultando em impacto potencialmente devastador para a avicultura e o comércio internacional de produtos avícolas, além de aumentar o custo de vida da população, vulnerabilizando a segurança alimentar.

A Gripe Aviária e Seus Riscos

Nas aves domésticas (como galinhas e patos), a infecção pode provocar doença sistêmica grave, com sintomas respiratórios, neurológicos e alta mortalidade repentina dos animais. Em contraste, muitas aves silvestres – especialmente aves aquáticas migratórias – podem carregar o vírus sem adoecer, atuando como reservatório e espalhando-o por longas distâncias durante suas rotas migratórias. Essa capacidade de aves silvestres disseminarem o vírus é o principal fator de introdução da gripe aviária em novas regiões, incluindo países antes livres da doença.

A transmissão entre aves ocorre principalmente por contato direto com secreções (nasais, oculares) e fezes de aves infectadas, ou indiretamente via água, alimentos, equipamentos e vestuário contaminados. O comércio global de aves e o intenso fluxo de pessoas e mercadorias também elevam o risco de introdução da IAAP em áreas livres. Por exemplo, mercados abertos com venda de aves vivas facilitam o contato próximo entre diferentes espécies de aves e humanos, criando condições para troca de vírus e até recombinações genéticas entre cepas aviárias. Portanto, práticas inadequadas de biossegurança podem transformar pequenas introduções do vírus em surtos amplos.

Embora seja principalmente uma enfermidade animal, a gripe aviária tem um componente zoonótico preocupante. O termo “zoonótico” significa que a doença pode ser transmitida de animais para humanos. A infecção humana pelo vírus H5N1 (cepa de IAAP mais disseminada globalmente nos últimos anos) é rara e normalmente restrita a pessoas com contato intenso e direto com aves doentes, como tratadores, granjeiros ou profissionais envolvidos no abate sanitário. Não há evidência de transmissão sustentada de humano para humano, o que significa que, até o momento, o vírus não é capaz de deflagrar uma pandemia em pessoas. No entanto, quando casos humanos ocorrem, costumam apresentar alta taxa de letalidade.

Esse risco limitado, mas existente, classifica a IAAP como uma zoonose de grande interesse em saúde pública: os especialistas alertam que o vírus pode, em tese, sofrer mutações ou combinar-se com cepas humanas de influenza, adquirindo capacidade de transmissão eficiente entre pessoas. Esse cenário hipotético – embora ainda não observado – coloca a gripe aviária na lista de ameaças pandêmicas em potencial. Assim, mesmo que o risco atual ao ser humano seja baixo e restrito a grupos ocupacionais específicos, a vigilância contínua e medidas de prevenção são indispensáveis.

Vídeo do Ministério da Agricultura e Pecuária traz orientações práticas para prevenir a gripe aviária. Assista:

Medidas Adotadas pelo Governo Brasileiro Contra a Gripe Aviária

Diante da expansão global da IAAP nos últimos anos e dos primeiros casos detectados no Brasil (em aves migratórias) a partir de 2023, o governo federal, especialmente por meio do Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) e órgãos parceiros, tem implementado um conjunto robusto de medidas preventivas e de contingência. Essas ações visam tanto evitar a introdução e disseminação do vírus quanto preparar uma resposta rápida, caso surja um foco no país. Entre as principais medidas adotadas, destacam-se:

  1. Plano de Contingência Nacional
    O Brasil desenvolveu planos nacionais de contingência específicos para emergências zoossanitárias, como a influenza aviária. Em 2023, o MAPA atualizou seu Plano de Contingência para IAAP, estabelecendo procedimentos padronizados de detecção, contenção e erradicação de focos. Assim que um foco é confirmado, esse plano orienta ações imediatas, como isolamento da área, sacrifício sanitário das aves infectadas, descarte seguro de carcaças e ovos, limpeza e desinfecção das instalações e investigação epidemiológica nas proximidades — tudo com rapidez, para evitar a propagação do vírus.
  2. Manutenção de Zona Livre de IAAP em Aves Comerciais
    Até muito recentemente, o Brasil era considerado livre de gripe aviária em plantéis comerciais, tendo registrado o vírus apenas em aves silvestres e criatórios de subsistência isolados. Esse status sanitário — reconhecido pela Organização Mundial de Saúde Animal (OMSA) — foi mantido por décadas e é crucial para as exportações avícolas. Mesmo com a identificação de um foco isolado em maio de 2025, as autoridades continuam trabalhando para regionalizar o problema e recuperar o mais rápido possível a condição de país livre da doença nas áreas produtivas. A estratégia de regionalização, já utilizada com sucesso em países como França e Estados Unidos, implica demonstrar aos parceiros comerciais que o surto foi contido a uma região específica, permitindo que outras regiões do Brasil continuem exportando sem restrições. Para isso, é essencial provar tecnicamente que não há circulação do vírus fora da zona delimitada do surto.
  3. Criação de Comitês de Crise e Ações Integradas
    O governo federal instalou comitês de crise para coordenar a resposta à ameaça de IAAP, integrando diversos órgãos e níveis de governo. Essa articulação envolve não apenas o MAPA e suas unidades de defesa agropecuária nos estados, mas também outros ministérios e agências — incluindo Saúde, Meio Ambiente, Economia (comércio exterior) — e entidades não governamentais relevantes. A atuação conjunta se dá nas três esferas (federal, estadual e municipal), garantindo fluxo de informações e uniformidade nas ações. Por exemplo, após a confirmação de foco em 2025, o MAPA comunicou oficialmente o ocorrido ao Ministério da Saúde e ao Ministério do Meio Ambiente, entre outros, para que cada área ativasse seus protocolos correspondentes. Também há cooperação com o setor privado: a Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA), representando a indústria avícola, coordena um comitê de crise com participação de produtores e empresas, alinhando as medidas emergenciais no setor produtivo. Essa convergência de esforços entre governo e iniciativa privada reforça a efetividade das ações de contenção.
  4. Capacitação de Profissionais e Reforço na Fiscalização em Fronteiras
    Muito antes do primeiro caso ser detectado em território nacional, o Brasil investiu na preparação técnica de seu serviço veterinário oficial e no fortalecimento da vigilância sanitária. Desde os anos 2000, equipes de veterinários e técnicos vêm sendo treinadas e equipadas para lidar com a gripe aviária. Exercícios simulados, cursos de atualização e distribuição de equipamentos de proteção individual (EPI) fazem parte dessa capacitação contínua. Em paralelo, o controle sanitário em portos, aeroportos e fronteiras foi intensificado para impedir a entrada do vírus através de aves migratórias interceptadas ou produtos avícolas contaminados. A vigilância inclui monitoramento de aves silvestres em rotas migratórias e fiscalização rigorosa de viajantes, cargas e encomendas que possam representar risco, com equipes alertas para qualquer ocorrência suspeita. Essas atividades de “barreira sanitária” nos pontos de entrada do país complementam a biossegurança interna das granjas, criando camadas de proteção contra a IAAP.
  5. Proibição de Eventos com Aves Vivas
    Como medida preventiva de curto prazo, o Ministério da Agricultura editou portarias suspendendo temporariamente exposições, feiras, torneios e quaisquer eventos que reúnam aves vivas em aglomerações. Essa proibição visa diminuir as chances de contato entre diferentes criações de aves e entre aves silvestres e domésticas — situação em que o vírus poderia facilmente se espalhar. Enquanto vigoram essas restrições, somente com autorização expressa do serviço veterinário estadual e após avaliação de risco é que alguma flexibilização pode ocorrer. Muitos estados brasileiros também adotaram medidas semelhantes, cancelando eventos avícolas e até restringindo o transporte intermunicipal ou interestadual de aves e ovos férteis oriundos de regiões de risco. Tais precauções, embora impactem tradições como exposições agropecuárias, são fundamentais para evitar que um eventual foco se amplifique por movimentação descuidada de animais.
  6. Monitoramento Conjunto com o Ministério da Saúde
    Inserindo-se na abordagem de Uma Só Saúde (One Health), o Ministério da Saúde acompanha lado a lado a situação da influenza aviária. Até o momento, não houve casos humanos no Brasil, mas a vigilância epidemiológica humana foi reforçada como precaução. O setor saúde elaborou, em dezembro de 2024, seu próprio Plano de Contingência Nacional para Influenza Aviária, delineando responsabilidades e estratégias no âmbito do SUS, caso ocorram infecções humanas. Profissionais de saúde foram orientados a notificar imediatamente qualquer suspeita de gripe aviária em pessoas (especialmente trabalhadores expostos a aves infectadas), e os laboratórios de referência estão capacitados para diagnosticar o vírus em amostras humanas. Há também um intercâmbio contínuo de informações entre as vigilâncias veterinária e em saúde: se um foco em aves é confirmado, as autoridades de saúde são alertadas para monitorar contatos humanos; reciprocamente, qualquer sinal incomum em pacientes com síndrome gripal e histórico de exposição a aves é imediatamente comunicado ao MAPA. Essa integração garante agilidade na resposta e prevenção de riscos zoonóticos.
  7. Protocolos de Proteção aos Trabalhadores do Setor Avícola
    Ciente de que o principal risco zoonótico recai sobre pessoas que manuseiam aves doentes, o governo difundiu protocolos de segurança para trabalhadores em granjas, transportadores, veterinários e equipes de controle sanitário. Essas diretrizes incluem uso adequado de EPIs (máscaras, luvas, óculos de proteção, roupas impermeáveis) durante qualquer contato com aves potencialmente infectadas ou material biológico contaminado. Nas operações de eliminação de focos, por exemplo, as brigadas sanitárias atuam totalmente paramentadas para evitar contaminação. Além disso, há monitoramento da saúde desses trabalhadores: quem esteve exposto a aves infectadas deve ser acompanhado pela vigilância médica por um período, com medição de temperatura e avaliação de sintomas respiratórios, podendo eventualmente receber medicamentos antivirais profiláticos conforme protocolo do Ministério da Saúde. Tais cuidados protegem os trabalhadores e também reduzem as chances do vírus “pular” para humanos — reforçando a barreira entre a saúde animal e a saúde pública.

Importância dessas Medidas para Evitar Prejuízos e Crises

As medidas acima não são excessos de zelo, mas sim ações essenciais para evitar uma série de consequências graves que um surto descontrolado de gripe aviária traria ao Brasil. Em primeiro lugar, está em jogo um enorme potencial de prejuízo econômico. O Brasil é, hoje, o maior exportador de carne de frango do mundo, responsável por cerca de 35% do comércio global do produto. Em 2024, o país exportou aproximadamente US$ 10 bilhões em carne de aves, atendendo a mais de 150 países. Essa posição de liderança foi conquistada ao longo de décadas, graças à confiança internacional na sanidade do plantel avícola brasileiro.

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Um surto de IAAP em território nacional automaticamente aciona barreiras comerciais: diversos países importadores impõem suspensões imediatas às compras de frango e outros produtos avícolas assim que a doença é notificada. Foi o que se viu após a detecção do foco de 2025 — mercados importantes, como China e União Europeia, anunciaram embargo temporário às importações de todo o Brasil, enquanto parceiros como Japão, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos optaram por restringir apenas as mercadorias originárias do estado afetado. Estima-se que a proibição chinesa por 60 dias represente perdas superiores a US$ 100 milhões por mês em exportações não realizadas. Portanto, cada dia a mais de surto ativo significa perda de divisas, impacto na balança comercial e risco de fechamento de plantas industriais voltadas à exportação. As ações rápidas de contenção visam abreviar esse período de interrupção: quanto antes o Brasil comprovar que erradicou o foco e não surgiram outros, mais cedo poderão ser retomadas as vendas ao exterior, recuperando mercados e evitando danos prolongados à cadeia produtiva.

Ademais, existe o impacto nos preços dos alimentos e na inflação. A carne de frango e os ovos são pilares da alimentação brasileira — o consumo per capita anual de frango no país gira em torno de 45 kg por habitante, bem acima do consumo de carne bovina ou suína. Isso significa que qualquer choque de oferta nesse setor tem potencial de afetar diretamente a mesa do consumidor e os índices de inflação de alimentos. Num cenário de surto amplo que exigisse o abate de milhões de aves (como já ocorreu em surtos na Ásia, Europa ou Estados Unidos), poderíamos ter escassez de produtos avícolas no mercado interno e consequente alta expressiva de preços.

Foi o que aconteceu nos Estados Unidos, em 2022-2023: uma grande epidemia de gripe aviária lá levou ao abate de mais de 50 milhões de aves, causando falta de ovos e aumento de quase 25% no preço médio do produto em poucos meses. No Brasil, evitar esse tipo de desabastecimento é crucial para a população, especialmente para as camadas de menor renda, que dependem da proteína de frango como opção acessível. Por outro lado, mesmo nos casos em que os embargos externos provocam oferta excedente no mercado doméstico (potencialmente segurando os preços temporariamente), o quadro geral ainda é prejudicial: produtores sofrem perdas e podem reduzir investimentos, prejudicando a produção futura. Além disso, a instabilidade no setor agropecuário tende a gerar insegurança nos mercados e pode refletir em pressões inflacionárias indiretas. Em suma, conter rapidamente a IAAP é necessário tanto para evitar uma disparada inflacionária nos alimentos quanto para manter a estabilidade das cadeias de abastecimento.

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Outro ponto crítico é a desorganização das cadeias produtivas agropecuárias e o risco à segurança alimentar nacional. A avicultura brasileira é um sistema altamente integrado: envolve desde produtores de insumos (rações, vacinas) até granjeiros, fábricas de processamento, transporte e distribuição no varejo. Um surto de gripe aviária, se mal controlado, rompe essa engrenagem. Granjas atingidas precisam ser interditadas e despovoadas, deixando de fornecer frangos para abate; áreas em quarentena não podem enviar ou receber novas aves ou ovos férteis, afetando incubatórios e a reposição de plantéis; frigoríficos podem ficar ociosos por falta de matéria-prima, levando a férias coletivas ou demissões temporárias. Em escala ampliada, isso poderia causar desemprego no campo e na indústria, falta de produtos para o consumidor e, paradoxalmente, desperdício de alimentos (por exemplo, granjas destruindo ovos porque não podem ser aproveitados).

A segurança alimentar do país ficaria comprometida caso a doença se alastrasse a ponto de reduzir significativamente a produção interna de proteínas acessíveis. Embora o Brasil seja grande exportador, cerca de 70% da carne de frango produzida é consumida internamente — base da dieta de milhões de famílias. Proteger a sanidade das aves, portanto, é proteger também a disponibilidade contínua de alimento para a população. As medidas de vigilância e biossegurança adotadas visam manter as cadeias produtivas organizadas e confiáveis, evitando tanto o colapso da oferta quanto a perda de credibilidade do produto brasileiro lá fora. Em última instância, trata-se de garantir que a soberania alimentar do país não seja abalada por uma crise sanitária: poder continuar alimentando nosso povo e também cumprindo compromissos com outras nações.

One Health: A Gripe Aviária como Questão de Saúde Pública

A estratégia One Health (Uma Só Saúde) reconhece que a saúde humana, animal e ambiental estão interligadas e que ameaças emergentes devem ser enfrentadas de forma interdisciplinar. A gripe aviária é um exemplo claro dessa interdependência. Do ponto de vista animal, é uma doença que demanda vigilância veterinária e medidas de defesa agropecuária rigorosas. Do ponto de vista ambiental, envolve a interação com fauna silvestre — aves migratórias que espalham o vírus — e requer monitoramento de ecossistemas (por exemplo, examinar aves em áreas costeiras, em lagoas, em parques zoológicos) para detectar precocemente a presença do patógeno. Do ponto de vista da saúde humana, embora não haja transmissão pelo consumo de frango ou ovos devidamente inspecionados, existe o risco ocupacional e potencial pandêmico já mencionado, o que significa que as autoridades de saúde precisam estar preparadas para identificar e conter eventuais casos em pessoas.

Dentro dessa abordagem integrada, o Brasil vem buscando coordenação estreita entre os setores. O conceito de Uma Só Saúde se materializa na articulação entre o MAPA, o Ministério da Saúde e o Ministério do Meio Ambiente, principalmente. Cada um desempenha um papel: o MAPA lida com a contenção nos animais e a preservação da produção; o setor de saúde pública prepara hospitais, laboratórios e protocolos para atendimento de possíveis casos humanos; e o setor ambiental cuida da vigilância da fauna e da gestão de locais sensíveis (por exemplo, no surto de 2025, um foco foi confirmado em aves silvestres de um zoológico, exigindo ação conjunta das autoridades agropecuárias e ambientais). A troca de informações em tempo real é fundamental: uma suspeita em aves aciona alertas na saúde humana — e vice-versa —, garantindo resposta rápida.

Organismos internacionais como a FAO e a OMSA ressaltam que apenas com essa visão unificada se consegue evitar que surtos zoonóticos se tornem crises sanitárias amplas. No Brasil, especialistas apontam que o episódio da gripe aviária revela a necessidade de aperfeiçoar ainda mais essa coordenação tripartite, para não haver falhas de comunicação entre veterinários, epidemiologistas e a vigilância ambiental. Felizmente, iniciativas concretas refletem a adoção do paradigma One Health. Além dos planos de contingência, o Ministério da Saúde lançou seu plano voltado à influenza aviária em humanos, como citado, definindo responsabilidades nos níveis federal, estadual e municipal e prevendo ações integradas de vigilância, laboratório, assistência e comunicação. Também são realizados treinamentos conjuntos e simulações envolvendo agentes de defesa animal e profissionais de saúde, de modo que todos saibam como agir de forma coordenada diante de um eventual transbordamento do vírus para pessoas. Essa preparação integrada fortalece a capacidade nacional de reagir a qualquer emergência zoonótica, seja gripe aviária ou outra doença emergente.

Em suma, a gripe aviária não é apenas um problema da avicultura, mas também uma questão de saúde pública e ambiental — enfrentá-la requer essa mentalidade de Uma Só Saúde, em que barreiras setoriais são quebradas em prol de uma resposta unificada para proteger a sociedade como um todo.

O Papel Insubstituível do Estado na Proteção Sanitária

As ações descritas evidenciam que enfrentar a ameaça da gripe aviária requer uma coordenação centralizada e autoridade que só o Estado possui. A ação do Estado é central e insubstituível nesse contexto por diversos motivos. Primeiramente, a manutenção da sanidade agropecuária nacional é um típico bem público: todos os produtores e consumidores se beneficiam de um status sanitário livre de doenças, porém nenhum agente individual teria incentivos ou meios suficientes para, isoladamente, garantir tal condição em âmbito nacional. Somente o poder público pode impor e organizar medidas coletivas de biossegurança, vigilância e resposta emergencial em larga escala. Por exemplo, uma granja pode – e deve – adotar medidas de higiene e controle de acesso, mas apenas o Estado pode regulamentar e fiscalizar essas medidas em milhares de estabelecimentos, evitando que eventuais falhas localizadas coloquem todo o setor em risco. Da mesma forma, em caso de surto, somente o Estado pode determinar quarentenas obrigatórias, sacrificar animais infectados (indenizando produtores quando necessário) e restringir movimentações em prol do interesse coletivo. Se cada produtor ou cada unidade subnacional agisse de forma fragmentada, o vírus encontraria brechas para se espalhar; é necessária uma resposta orquestrada nacionalmente para barrar uma doença tão transmissível.

Além disso, apenas o Estado detém a prerrogativa de representar o país internacionalmente em questões sanitárias. A credibilidade do Brasil perante os mercados externos depende de seus serviços veterinários oficiais, das certificações e relatórios que o governo emite seguindo padrões da OMSA. Assim, recuperar e manter o status de país livre de IAAP – condição essencial para retomada das exportações após um foco – é uma missão que recai sobre o Estado brasileiro, e não poderia ser atingida por esforços individuais ou privados. Vimos que o ministro da Agricultura e sua equipe negociam com parceiros comerciais a adoção de restrições temporárias regionais em vez de nacionais, com base na confiança no sistema de vigilância e transparência do Brasil. Esse tipo de negociação sanitária só é possível devido à robustez do sistema estatal de defesa agropecuária construído ao longo do tempo. Em outras palavras, o Estado atua como guardião da reputação sanitária do país – e, por extensão, da viabilidade econômica de todo um setor produtivo estratégico.

Também no aspecto de saúde pública, a proteção da população contra riscos zoonóticos depende de ações estatais coordenadas. A preparação do SUS para eventuais casos humanos, a definição de protocolos clínicos, a estocagem de antivirais e vacinas (se existissem), tudo isso exige planejamento governamental central. Em situações de crise sanitária, é ao Estado que a sociedade recorre para orientação e apoio. No caso da IAAP, o governo federal instituiu emergencialmente um estado de emergência zoossanitária que lhe permitiu mobilizar recursos financeiros extras e articular diversos órgãos de forma rápida. Nenhum ator privado isolado teria como substituir essa capacidade de mobilização ampla.

Vale ressaltar que, mesmo os produtores e empresas do agronegócio, por mais competentes que sejam em seus negócios, dependem fundamentalmente de um cenário sanitário estável garantido por políticas públicas eficazes. Um surto de gripe aviária foge ao controle individual — ele exige, desde o início, vigilância epidemiológica centralizada, alerta precoce, comunicação unificada de riscos e medidas sincronizadas em todo o território. Esse é precisamente o tipo de desafio em que o poder estatal mostra seu valor insubstituível.

Conclusão: Capacidade Estatal e Investimento Contínuo para Soberania Alimentar

O Brasil enfrenta o atual desafio da gripe aviária de forma coerente e decidida, demonstrando coragem ao adotar rapidamente medidas duras, porém necessárias, como abater plantéis inteiros infectados, suspender exportações de regiões afetadas e impor restrições preventivas em todo o país. Essa prontidão é fruto de anos de construção de capacidade técnica e institucional. A própria demora de quase 20 anos para o vírus enfim atingir uma granja comercial brasileira não foi por sorte, mas sim resultado de medidas preventivas eficazes mantidas ao longo de duas décadas. Ou seja, o esforço contínuo em monitoramento, treinamento e educação sanitária adiou significativamente a entrada da doença no parque produtivo nacional – um feito notável diante da disseminação global do H5N1. Isso deve servir de lição: somente com investimento público contínuo na capacidade estatal, tanto técnica quanto operacional, poderemos manter e aprimorar esse nível de proteção.

Painel do Ministério da Agricultura traz dados atualizados sobre casos de gripe aviária no Brasil. Acesse aqui

A soberania alimentar e sanitária do Brasil – a garantia de que podemos produzir alimentos com segurança e qualidade para nossa população e para outros povos – depende de estruturas públicas sólidas. É imprescindível continuar fortalecendo órgãos como os da defesa agropecuária, as vigilâncias em saúde, os laboratórios de diagnóstico e as redes de pesquisa que dão suporte científico às decisões. Tais investimentos abrangem desde continuar ampliando quadros de fiscais agropecuários, modernizando laboratórios federais e estaduais, até o fomento à formação de especialistas em saúde única. Também é importante continuar aprimorando marcos legais que assegurem ao Estado agilidade de resposta, bem como mantes fundos de emergência para custear ações imediatas (como indenizações a produtores afetados, aquisição de insumos de biossegurança, etc.). Cada real investido em prevenção de doenças animais economiza muitos outros que seriam gastos em crises fora de controle.

Em resumo, a gripe aviária H5N1 está colocando em evidência a capacidade de reação do Brasil. O Estado brasileiro vem encarando o problema de maneira integrada, mobilizando conhecimento científico e ferramentas de gestão para proteger o país de um revés sanitário e econômico. Mas a luta contra ameaças biológicas é contínua – exige vigilância permanente e compromisso político de longo prazo. Reforçar a infraestrutura pública de saúde animal e humana não é apenas uma questão técnica, mas uma escolha estratégica de nação. A soberania e as capacidades estatais são fundamentais para um Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento. Ao fazê-lo, asseguramos não somente a retomada rápida diante desta crise imediata, mas também a prevenção de futuras crises, mantendo o Brasil soberano na produção de alimentos e referência mundial em sanidade. Em última instância, defender a sanidade agropecuária com um Estado forte é defender a sociedade brasileira em seu direito à segurança alimentar, à saúde e ao desenvolvimento sustentável.

Luiz Rodrigues é consultor legislativo do Senado Federal e ex-secretário-executivo adjunto do Ministério da Agricultura e Pecuária. Engenheiro agrônomo, é pós-graduado em Relações Internacionais e mestre em Desenvolvimento e Governança.

Fonte: https://grabois.org.br/2025/05/22/gripe-aviaria-desafios-sanitarios-resposta-estatal-e-soberania-alimentar/

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CPIs têm liberdade para investigar fatos conexos ao principal

Sob a égide do atual regime democrático, a CPI se revelou como o mais poderoso instrumento à disposição do Parlamento para viabilizar a sua função fiscalizadora, pois é a única comissão dotada de “poderes de investigação próprios das autoridades judiciais” (Constituição, artigo 58, § 3º), podendo, por exemplo: decretar a transferência de sigilo (bancário, fiscal e telemático); ouvir indiciados; inquerir testemunhas sobre compromisso; etc.

No legítimo exercício de sua função fiscalizadora, a Câmara dos Deputados e o Senado — em conjunto ou separadamente — poderão criar comissões parlamentares de inquérito, por intermédio de requerimento subscrito por, pelo menos, 1/3 dos membros da respectiva Casa. Ainda, as CPIs, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, destinam-se à apuração de fato determinado e por prazo certo.

Portanto, são requisitos de instauração de qualquer CPI: requerimento subscrito por, pelo menos, 1/3 dos membros da respectiva Casa; existência de fato determinado; e prazo certo para conclusão dos trabalhos.

Não obstante a importância de todos os requisitos supracitados, porquanto, a falta de qualquer deles importará na impossibilidade de instauração da CPI, é no “fato determinado” que residem as maiores celeumas, máxime os denominados “fatos conexos”.

O que é um fato determinado?

É todo o fato específico, delineado de modo a não restar dúvida acerca do objeto que será investigado. [1] Todavia, não é incomum a existência de CPI com escopo amplo, por exemplo: violência contra a mulher.

É preciso salientar que não há óbice constitucional à criação de CPI para apurar fatos amplos, pois o objetivo do inquérito parlamentar não se restringe tão somente à apuração de fatos criminosos, mas, outrossim, serve como instrumento profícuo à alteração da legislação vigente e ao aperfeiçoamento de políticas públicas.

Destarte, para fins de instauração de uma CPI, o fato determinado poderá ser amplo, desde que seja, ao menos, determinável.

Mas, e se ao longo dos trabalhos desenvolvidos pela comissão surgirem “fatos conexos”, isto é, eventos não abrangidos no escopo inicial da investigação, mas que com ela guardam alguma relação de pertinência? A investigação de tais fatos é constitucionalmente viável?

A resposta é afirmativa, porquanto as CPIs poderão estender o âmbito de sua apuração a fatos ilícitos ou irregulares que se revelarem conexos à causa determinante de sua criação.
Tal afirmação pode ser corroborada pelos escólios de Paulo Gustavo Gonet Branco, pois, para o autor, “tudo o que disser respeito, direta ou indiretamente, ao fato determinado que ensejou a Comissão Parlamentar de Inquérito pode ser investigado”. [2]

Poder de investigação das CPIs

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) se formou no mesmo sentido, por exemplo, na CPI da exploração sexual de crianças e adolescentes, a 1ª Turma concluiu que: “As comissões Parlamentares de Inquérito têm poderes para requisitar documentos relativos a fatos conexos aos que motivaram sua criação.” (MS 32.239)

Noutra ocasião, restou decidido pelo plenário da Suprema Corte que é viável a extensão dos trabalhos da CPI a fatos conexos ao objeto inicialmente estabelecido (HC 100.341).

No julgamento do HC 71.231, por fim, o plenário do STF deliberou que as CPIs devem apurar fato determinado. No entanto, não estão impedidas de investigar fatos que se ligam com o fato principal. Na ocasião, o inquérito parlamentar colimava apurar ilegalidades na concessão de benefícios previdenciários por autarquia federal — Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) —, mas a comissão também decidiu perquirir atos espúrios relacionados ao parcelamento dos créditos devidos ao Regime Geral de Previdência Social (RGPS) por sociedades empresárias.

Conclui-se, portanto, que, de acordo com a doutrina e a jurisprudência do STF, as CPI podem apurar fatos conexos, desde que guardem algum grau de relação com o seu escopo inicial.

[1] CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1992. v. 5. p. 2700.

[2] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. – 8. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2013, p. 854.

Marcelo Cheli de Lima

é advogado do Senado, mestre em Direito Tributário, Financeiro e Econômico pela Faculdade de Direito da USP, pós-graduado em Direito e Economia pela Unicamp e presidente da Comissão de Direito Financeiro, Administrativo e Econômico da OAB/SP, subseção de Sumaré (SP).

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O Verdadeiro Placar da Anistia

Por Petronio Portella Filho*

O Estadão foi cheerleader (animador de torcida) do impeachment da Dilma por conta das pedaladas fiscais. Ele até criou placar para incentivar adesões. Mas não fez o mesmo pelo impeachment de Jair Bolsonaro, que praticou crimes muito mais graves. No atual governo, o Estadão, retoma o papel de cheerleader para defender a anistia — na verdade, a impunidade dos golpistas do 8 de janeiro.

A reportagem “Placar da Anistia” é muito longa e deixa os resultados mais importantes para o final. No subtítulo do artigo se lê “atual número [de votos favoráveis] garante apresentação de requerimento de urgência para votação no plenário”.

O animador de torcida exagerou. Nada está garantido, nem mesmo o início da tramitação do projeto na Câmara. O Estadão esqueceu um detalhe. Antes da votação, o projeto precisa ser pautado pelo presidente da Câmara, Hugo Motta. Esse pequeno detalhe fez com que todos os 153 pedidos de impeachment de Bolsonaro fossem engavetados.

Além disso, o Placar favorável à anistia citado nas dez primeiras páginas se refere aos resultados de uma pergunta genérica:

“Você é a favor da concessão de anistia aos envolvidos nos atos de 8 de janeiro?”

Resultado: 193 deputados responderam sim e 126 não. Os votos a favor são muitos, mas estão aquém da maioria absoluta de 257 votos (exigida pela eventual derrubada do veto presidencial).

A pergunta menciona atos, não crimes. Alguns dos que votaram sim pretendiam talvez anistiar “velhinhas com a Bíblia na mão” — muito mencionadas nas redes sociais apesar de não terem sido fotografadas. A rejeição da proposta ficou muito clara quando a pergunta do Estadão incluiu Bolsonaro e demais líderes golpistas.

“Considera que a anistia deve atingir os denunciados pelo STF no processo que envolve o ex-presidente Jair Bolsonaro e outras 33 pessoas?”

Resultado: 119 votos sim e 173 votos não. O resultado está lá, com tabela e tudo, na terceira e última parte da longa reportagem. Esta é a pergunta importante, pois ela explicita os efeitos da eventual aprovação do PL 2858/2022 do Major Vitor Hugo – PL/GO.

O objetivo da campanha pela anistia é aprovar o PL de Vitor Hugo. Ele concede anistia para crimes políticos e eleitorais praticados desde 30/10/22, término do segundo turno.

O placar relativo a tal proposta obtido pelo animador de torcida — 119 sim e 173 não— não é, digamos assim, animador. Mas a manchete do Estadão induz leitores superficiais a pensar o contrário.

O PL da Anistia apoiado pela oposição não tem apoio popular, nem parlamentar e é inconstitucional. Para que virasse lei, ele teria que cumprir sete etapas:

1. ser pautado pelo Presidente da Câmara,

2. ser aprovado por maioria simples pelo plenário da Câmara, assegurado o quórum de 257 deputados,

3. ser pautado pelo Presidente do Senado,

4. ser aprovado pelo plenário do Senado por maioria simples, com quórum de 41 senadores,

5. ser sancionado pelo presidente da República, o que não deve acontecer. O PL deve ser vetado e retornar ao Congresso,

6. o veto do presidente precisa ser derrubado por pelo menos 257 votos de deputados e 41 votos de senadores.

7. por último, o Supremo precisa aceitar que o Poder Legislativo se tornou instância revisora do Poder Judiciário e não declará-lo inconstitucional. Tal aceitação contraria o princípio da separação e independência dos poderes, cláusula pétrea da Constituição Federal de 1988.

Aos que ainda não estiverem convencidos das chances remotas de aprovação do projeto pela Câmara dos Deputados, lembro que o presidente anterior, Arthur Lira, bolsonarista, teve a oportunidade de colocá-lo na pauta em 2022, 2023 e 2024, mas não o fez.

*Petronio Portella Filho é Consultor Legislativo do Senado Federal (aposentado)

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