Os exemplos de titulações concluídas devem-se à luta persistente dos movimentos em favor dos direitos quilombolas do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) – órgão da esfera federal, competente pela delimitação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes de quilombos.
A autodefinição de uma comunidade quilombola está diretamente ligada com a relação que esse grupo étnico possui com a terra, território, ancestralidade, tradições e práticas culturais. A importância da preservação desse patrimônio assegura a potencialização de sua capacidade autônoma, seu desenvolvimento econômico, etnodesenvolvimento e a garantia de seus direitos territoriais.
Ex-consultor-geral da Advocacia-Geral da União e atual consultor legislativo do Senado Federal, Ronaldo Jorge Araujo Vieira Júnior afirma que o Decreto nº 4.887/2003 é fundamental para consolidar o direito constitucionalmente assegurado aos remanescentes das comunidades de quilombos. E destaca que o documento é o “coração” da política pública de identificação e de demarcação de terras quilombolas.
A proteção dessas comunidades por meio da titulação de suas terras significa, ainda, a preservação da identidade nacional e também de importantes áreas de proteção ambiental, uma vez que são as comunidades tradicionais (indígenas e quilombolas) as maiores cuidadoras desses espaços.
Nesta terceira entrevista do especial Decreto 4887/2003 – constitucionalidade da regulamentação quilombola, o mestre em Direito e Estado avalia a legislação em defesa da população negra no país e reforça a importância da Constituição de 1988 por assegurar e entender que a terra, coletivamente apropriada, é a base da cultura desses povos tradicionais bem como espaços de preservação ambiental. Confira:
Ascom/FCP – No Brasil, os direitos quilombolas partem da certificação por autodefinição e da titulação do território até que se aprove o contrário. Diante disso, como avalia a importância do Decreto 4887/2003?
Vieira Jr – O Decreto nº 4.887/2003 é fundamental para dar concretude ao direito constitucionalmente assegurado aos remanescentes das comunidades de quilombos, visto que regulamenta o disposto no art. 68 do Ato das Disposição Constitucionais Transitórias (ADCT). A regra da autodefinição, alvo de inúmeras críticas, não é absoluta, submete-se à avaliação do Governo Federal, por intermédio da Fundação Palmares e é adequada com os tratados internacionais firmados pelo Brasil e que já integram o ordenamento jurídico nacional. O Decreto é o “coração” da política pública de identificação e de demarcação de terras aos remanescentes de quilombos, elaborado ainda no primeiro ano do Governo Lula, com o apoio de amplos segmentos da sociedade brasileira.
Ascom/FCP – O Decreto observa as normas da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Isto não o torna suficiente para cumprir o que é previsto pela Constituição?
Vieira Jr – Mais do que isto. O Governo Federal, desde o primeiro Governo do ex-Presidente Lula, adota as ferramentas disponíveis da interpretação constitucional para considerar que o art. 68 do ADCT é auto-aplicável e, portanto, não há que se falar na necessidade de lei para regulamentar o dispositivo constitucional. Basta que o Decreto fixe, como fixa, regras objetivas para identificação e demarcação de terras. Essa, inclusive, é a tese central defendida pelo Governo Federal na ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Democratas em face do Decreto 4.887/2003.
Ascom/FCP – A Proposta de Emenda Constitucional 215 propõe que passe a ser competência exclusiva do Congresso Nacional a aprovação da demarcação de “terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas” (artigo 49, inciso XVIII, acrescido) e quilombolas. Política e juridicamente, o que isso significa?
Vieira Jr – A PEC 215, de 2000, transfere do Poder Executivo para o Congresso Nacional a competência para aprovar a demarcação das terras indígenas e, também, ratificar as terras já homologadas. Registre-se que a possibilidade de revisão das terras já demarcadas caiu com o parecer aprovado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados. A primeira impropriedade de natureza jurídico-constitucional, a meu ver, é atribuir competência eminentemente administrativa ao Poder Legislativo, o que definitivamente transborda de suas atribuições e viola o princípio da independência e harmonia dos Poderes. Politicamente, a proposta de alteração da Constituição Federal objetiva criar novas instâncias de deliberação sobre a matéria com o intuito de retardar ao máximo e, em algumas circunstâncias, até inviabilizar os procedimentos de demarcação de terras indígenas e quilombolas. Já existe legislação de referência suficiente sobre o tema e as balizas já estão colocadas, no caso das terras indígenas, pelo Supremo Tribunal Federal com o julgamento da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. A PEC nº 161, de 2007, foi apensada e trata da limitação ao exercício dos direitos dos quilombolas. Trata-se, enfim, de obstáculo à regularização fundiária no país e à garantia do exercício de direitos constitucionalmente assegurados aos índios e aos quilombolas.
Ascom/FCP – E quanto à consideração feita pelo Partido Democratas (DEM) de que somente após a aprovação legislativa é que as terras ocupadas por esses grupos sejam inalienáveis e indisponíveis (artigo 231, parágrafo 4º, alterado), como avalia?
Vieira Jr – Essa interpretação somente será possível se aprovada a PEC 215, de 2000, e as outras que lhe estão apensadas. Todo o procedimento de demarcação somente estaria concluído com a aprovação do Congresso Nacional, mas o processo legislativo para aprovação de emenda à Constituição é bastante longo e complexo.
Ascom/FCP – O que pensa dos critérios e procedimentos vigentes para a demarcação de áreas indígenas e quilombolas?
Vieira Jr – São critérios adequados, à luz da Constituição Federal e dos tratados internacionais firmados e incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro. Ressalto que o Governo Federal, ainda em 2008, preocupou-se em eliminar distorções existentes na sistemática em vigor à época. Então, por determinação do então Presidente Lula, a Advocacia-Geral da União coordenou um grupo de trabalho composto por inúmeros órgãos e entidades federais que possuíam interface com a questão e promoveu significativas alterações nas instruções normativas do INCRA e da Fundação Palmares. Estas interfaces detalhavam o procedimento de identificação e demarcação das terras das comunidades remanescentes de quilombos para tornar o procedimento mais objetivo e mais sustentável juridicamente. O coroamento de todo esse processo se deu com a consulta pública a representantes de trezentas comunidades remanescentes de quilombos, primeira realizada no Brasil com base na Convenção nº 169, da OIT. Nela, a despeito de todas as divergências e críticas, caminhou-se para uma maior racionalidade de todo o procedimento sem que fosse necessário alterar uma vírgula sequer do Decreto nº 4.887, de 2003.
Ascom/FCP – Quanto ao julgamento do Decreto 4887/2003 a ser realizado pelo Supremo Tribunal Federal no dia 18 de abril, existe previsão quanto ao que pode ser decidido?
Vieira Jr – O que posso afirmar é que o esforço de aprimoramento da legislação, de modo a torná-la mais objetiva e razoável, levado a cabo ainda em 2008 pelo Governo Federal é uma sinalização de que alterações e melhoramentos são sempre possíveis sem que, contudo, a essência dos direitos fundamentais seja afetada.
Ascom/FCP – Outras considerações que gostaria de fazer?
Vieira Jr – Quero parabenizar o esforço de mobilização que vem sendo feito pelo Governo Federal, em especial pela Fundação Cultural Palmares, em defesa do Decreto nº 4.887, de 2003, por acreditar que a sistemática ali posta transforma em realidade a intenção do constituinte de 1988 de assegurar a propriedade da terra aos remanescentes das comunidades de quilombos, e por entender que a terra, coletivamente apropriada, é a base da cultura desses povos tradicionais. O Brasil lhes deve respeito.