Por Fernando Veiga Barros*
Um dos agentes econômicos mais afetados pela pandemia talvez sejam as instituições financeiras. De uma maneira geral, afetadas pela redução na quantidade de recursos que por elas transitam. O drástico arrefecimento das atividades econômicas deve produzir impactos adversos tanto nas operações passivas quanto nas ativas desses agentes.
E, isso, por uma razão quase trivial: o crédito e as instituições financeiras, no Brasil, são uma coisa só, pois assim se convencionou estipular nas regras de organização e funcionamento de nosso Sistema Financeiro Nacional.
Vejamos o que podemos esperar, num contexto em que o crédito tenha natureza bancária, além de ser muito caro e insuficiente. Num contexto exatamente como o brasileiro.
Do lado das operações passivas, a captação deve ser submetida a processo de desidratação. Depósitos à vista e a prazo, assim como outras formas de arrecadação de fundos, devem experimentar perceptível declínio, em seus volumes, ao longo dos próximos meses. Não apenas se deve verificar menor injeção de novos recursos, mas, também, presume-se muito provável a realização de saques, até mesmo antecipados, de recursos que, em circunstâncias normais, permaneceriam em poder das instituições financeiras.
Trata-se, naturalmente, de uma “desalavancagem” forçada. Pode configurar-se abrupta drenagem dos capitais de terceiros, comprometendo a liquidez do sistema. Inicialmente, comprometê-la de maneira idiossincrática, colhendo as instituições menos resilientes na primeira lufada. Num segundo momento, de forma sistêmica, arrastando as demais instituições à medida que os efeitos econômicos da pandemia se prolonguem e alastrem, dentro e fora do Sistema Financeiro Nacional.
Do lado das operações ativas, também podemos esperar impactos adversos. Devedores podem vir a ter certa dificuldade para honrar seus compromissos junto às instituições financeiras. Quer dizer: toda a lógica do sistema de crédito pode ser abalada pelo fato de que, caindo produção e vendas, também o contínuo processo de formação e transformação de meios de pagamento é desarticulado.
A interminável cadeia de valores a receber é rompida em muitos de seus elos mais relevantes. Uma vez rompida, cessam pagamentos e circulação de recursos, ocasionando a asfixia crescente não só dos intermediários financeiros, mas, também, do restante do sistema econômico.
Algo semelhante já ocorreu recentemente. Ocorreu por oportunidade da crise financeira de 2008. Por causas diversas, mas com efeitos gerais muito semelhantes aos esperados atualmente, enfrentou-se o risco de um “credit crunch” e, em desdobramento, de um coma econômico generalizado. A diferença é que, ontem, os riscos foram menores porque materializados a partir de um único e específico setor da economia – o imobiliário. Hoje, para nosso azar, a pandemia afeta todos setores, direta ou indiretamente, e os choques podem ter origem e destino generalizados.
Antes, como agora deveria ser, percebeu-se que a solução residiria em “afinar o sangue” de todo o sistema econômico, de modo que a circulação pudesse ser estabilizada e retomada gradativamente. Prazos? Esses foram ampliados quase que “sine die”, o que se logrou fazer com a cirúrgica e sistematicamente renovada injeção de recursos em mercados primários e secundários. Preços? Esses foram mantidos tão baixos quanto possível, o que se logrou fazer, no caso dos juros, mediante a alteração da composição dos meios de pagamento.
Mas, qual foi o porquê disso? A ideia geral foi evitar o “calço hidráulico” de toda a economia. Evitar que o processo de formação e transformação dos meios de pagamento sofresse descontinuidade, sancionando ou sacramentando a desarticulação, no plano monetário, de setores inteiros da economia real.
A solução, agora, parece que deverá seguir receituário semelhante. A fim de que os agente econômicos não quebrem definitivamente, pois estão sem produzir, vender e empregar, precisarão de mais tempo e menores custos para que sigam existindo e reúnam condições de retomar as atividades num futuro próximo. A economia precisa de capital para girar durante a paralisação.
Isso significa estender crédito aos agentes econômicos, nas necessárias condições de prazo e de preço, a fim de que possam, viavelmente, financiar não apenas a relativa ociosidade, no presente e ao longo do futuro próximo, mas, também, para que possam honrar compromissos anteriormente assumidos, num passado em que os cenários prospectivos não contemplavam os hoje conhecidos impactos da pandemia.
A solução, portanto, reside no crédito e na forma como os meios de pagamento deverão ser administrados, de modo que não haja destruição generalizada de direitos e obrigações. Há um déficit crescente de produção e vendas, o que significa que a relativa ociosidade do sistema econômico deverá ser compensada por maiores níveis de liquidez e melhores condições de solvência. É preciso oferecer condições para que os agentes econômicos recuperem sua capacidade de pagamento, tornando-se aptos a honrar, com crédito, as prestações e as contraprestações que não possam ser honradas com produção, vendas e a decorrente renda. E essas condições se demonstram tão mais necessárias quanto mais críticos forem os impactos da pandemia nas atividades econômicas reais.
Num contexto como esse, afigura-se duvidosa a capacidade de o Sistema Financeiro Nacional cumprir o papel que lhe cabe. Isso porque, tradicionalmente, o crédito tem sido refém dos elevadíssimos custos de nosso modelo de intermediação, a ponto de ser crônica a sua inexistência, pelo menos nas requeridas condições de qualidade e quantidade, mesmo nas melhores fases da economia brasileira.
Exatamente por isso, os desafios conjunturais, representados pela pandemia, não poderão ser enfrentados e vencidos sem que se contemplem mudanças, relativamente profundas, na estrutura de organização e no funcionamento de nosso Sistema Financeiro Nacional.
Engana-se quem acredita que a solução econômica da crise seja fiscal. Não é. Ela é monetária e, no âmbito da moeda, de crédito. Isso muitos agentes econômicos já perceberam, a exemplo de locadores e locatários, cujas relações obrigacionais vêm sendo repactuadas, a fim de que se mantenham exequíveis e válidas. Em tantos outros casos, a repactuação não poderá ser feita no “fio do bigode”, pois exigirá a moeda como instrumento de mediação.
*Consultor de Orçamentos do Senado Federal