Crimes sexuais como atos de genocídio no direito internacional dos conflitos armados

Por Clarita Maia Costa*

Desde o ataque terrorista do Hamas a Israel havido no dia 7 de outubro de 2023 e o estupro de idosas, mulheres e crianças judias como instrumento de guerra, alguns coletivos feministas judaicos denunciam a omissão de suas contrapartes e de organizações internacionais na condenação categórica e incondicional a esses crimes.

O silêncio causa espécie porquanto o Direito Internacional dos Conflitos Armados (Dica) considera particularmente ignominiosos os crimes sexuais. Entender o enquadramento dos crimes cometidos pelos membros civis e militares do Hamas perante o Dica é inadiável para que haja clareza jurídica e realinhamento do debate público, sequestrado por paixões sectárias.

A guerra cultural que, de imediato, se sucedeu aos ataques a Israel, polarizando os espectros políticos já em movimento longevo de radicalização, empobreceu ainda mais o diálogo público. Uma das vítimas foi o direito penal internacional e seus tipos penais que, sem tratamento escrupuloso, viraram peças de retórica.

Crimes sexuais como atos de genocídio perante o direito internacional dos conflitos armados
O Direito da Haia e de Genebra e seus protocolos trouxeram padrões protetivos de gênero. Contudo, somente a partir dos anos 1990, com a evolução da jurisprudência dos tribunais penais internacionais ad hoc, é que os crimes (quase) tipicamente de gênero ganharam contornos mais claros.

Por crimes tipicamente de gênero surgem à mente os crimes e assaltos sexuais, o estupro, a esterilização, o aborto, o casamento e a prostituição forçados e o trabalho escravo em geral. A evolução do debate público sobre a necessidade de mais vigorosa punição dos crimes de gênero cometidos durante conflitos armados fez surgir uma série de denúncias sobre os crimes sexuais cometidos contra homens durante hostilidades, comprometendo a premissa de que seriam crimes tipicamente de gênero.

O fato é que os crimes sexuais ainda vitimizam mais as mulheres, soldadas ou civis.

O impacto desproporcional dos conflitos armados sobre mulheres e meninas foi a razão por que o Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) decidiu pela publicação de uma série de dez resoluções.

A Resolução 1.820 (2008), em seu primeiro parágrafo, “salienta que a violência sexual, quando utilizada ou encomendada como tática de guerra a fim de visar deliberadamente civis ou como parte de um ataque sistemático contra populações civis, pode exacerbar significativamente situações de conflito armado e que possam impedir o restabelecimento da paz internacional e segurança”. Afirmação que será repetida na Resolução 2242 (2015).

De acordo com a Resolução 1.820 (2008), em seu parágrafo quarto, “[…] a violação e outras formas de violência sexual podem constituir um crime de guerra, crime contra a humanidade ou ato constitutivo de genocídio […]”.

Nos consideranda da Resolução 1.888 (2009), a possibilidade de enquadramento dos crimes sexuais como atos de genocídio, crimes contra a humanidade ou crimes de guerra é reafirmada. Os mesmos termos são repetidos na Resolução 1.960 (2010) e na Resolução 2.467 (2019). A Resolução 2.106 (2013), no parágrafo segundo, faz observar que a violência sexual pode constituir crime contra a humanidade ou ato constitutivo em relação ao genocídio.

As resoluções supramencionadas são importantes peças político-jurídicas que demonstram o consenso e a constância da interpretação de que os crimes sexuais, a depender dos elementos do crime envolvidos, podem ser enquadrados como crimes de genocídio (artigo 6º, caput, a, b, c), como crimes contra a humanidade (artigo 7º, g) e como crimes de guerra (artigo 8º, 2, a, vi e xxii).

Essa foi uma evolução recente. De acordo com Christine Chinkin, as jurisdições dos tribunais internacionais de Tóquio e de Nuremberg, embora abrangessem crimes de guerra (violações das leis e dos costumes de guerra) e crimes contra a humanidade, não incluíram sob seus escopos de análise o estupro e a violência sexual.

Ainda segundo a autora, o Estatuto do Tribunal Penal ad hoc para a ex-Iugoslávia (TPIJ) não dispunha os crimes de violência sexual como grave violação ou violação das leis e dos costumes da guerra. Contudo, listava o estupro como um crime contra a humanidade. Em alguns julgados, chegou a considerá-los como genocídio.

O Tribunal Penal Internacional para Ruanda (TPIR) foi vanguardista na identificação do estupro como ato de genocídio quando cometido com a intenção de destruir no todo ou em parte um grupo identificado em termos nacionais, étnicos, raciais ou religiosos. De fato, o estupro e outras formas de violência sexual extrema têm estado no centro da destruição do grupo.

A jurisprudência dos tribunais ad hoc continua influente como peças de persuasão e referência.

Os TPIJ e o TPIR convergiram no sentido de reconhecer estupro e outras formas de violência sexual como potencialmente constitutivas do crime de genocídio quando cometidos com a intenção de destruir no todo ou em parte um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Entendimento, hoje, bem assentado na jurisprudência e na doutrina internacionais.

A tragédia histórica dos crimes sexuais como genocídio: do massacre otomano ao massacre do Hamas
Em ao menos sete episódios profundamente traumáticos na história contemporânea os crimes sexuais foram cometidos como atos de genocídio: massacre armênio (1915-1923); estupro de Nanquim (1937-1938); Holocausto judaico (1941-1945); guerra na ex-Iugoslávia (1991-2001); 1º e 2º conflitos na República Democrática do Congo (RDC); assalto às mulheres Yazidi, na Síria e Iraque, pelo Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIS); e o massacre do Hamas nos kibutzim de Kfar Azza e de Be’er e na rave Supernova, que ocorria em Re’imi, Israel (2023).

Para Cláudia Card, “há mais de uma maneira de cometer genocídio. [Uma delas] é destruir a identidade de um grupo, dizimando laços culturais e sociais. O estupro faz as duas coisas. […]. Onde o genocídio por dizimação cultural é o objetivo principal, o massacre universal de cativos é desnecessário”. Em todos os episódios mencionados, o estupro das mulheres como simbologia de destruição da identidade do grupo.

O assassinato em massa de armênios pelo Estado Otomano iniciou, na comunidade jurídica internacional, o debate sobre o que viriam a ser considerados crimes contra a humanidade. Nada obstante, o estupro e a crucificação de mulheres armênias, alusão clara ao Messias da religião cristã, que é a religião daquele povo, é um vilipêndio que sinaliza o desejo de dizimação religiosa e cultural. Embora o debate sobre os crimes sexuais como genocídio ainda não tivesse articulado à época, como análise crítica, é pertinente notar o caráter genocida nesses atos.

Na constância da ocupação japonesa de Nanquim, — também conhecida por Estupro de Nanquim — em pouco menos de dois meses, entre 20 mil e 80 mil mulheres chinesas foram estupradas, algumas torturadas e estripadas, havendo notório elemento de ódio civilizacional”.

Quando do Holocausto judaico, os crimes sexuais contra mulheres e homens judeus, dentro e fora dos campos de concentração, eram mais uma camada de coisificação de seus corpos e de anulação de sua identidade.

Durante o primeiro e o segundo conflitos na RDC, a política de estupro genocida foi uma constante, tratando-se, hoje, de uma abjeta política de Estado. 

Ao encontro da pressão internacional, a Lei sobre Sobreviventes Yazidi, promulgada pelas autoridades iraquianas em 2021, reconheceu as violações do ISIS contra mulheres e meninas das minorias Yazidi, Turkman, Cristã e Shabaks como genocídio e crimes contra a humanidade.

Finalmente, os estupros cometidos pelo Hamas nos kibutzim, contra idosas, jovens e crianças. No documento intitulado Convenção do Hamas de 1988, o Pacto do Movimento de Resistência Islâmica, artigos 7º, 13, 15, constam exortações ao genocídio judaico. Essa intenção é reforçada pelas manifestações de lideranças do Hamas que se sucederam aos ataques.

Os crimes praticados contra as mulheres judias, pela simbologia que as sociedades patriarcais do Oriente Médio projetam no gênero, é o ato máximo de humilhação ao povo que ela representa, de ódio civilizacional, de subjugação e de aniquilamento.

Questões relevantes na configuração do crime de genocídio
Para o jurista italiano Antonio Cassese, o primeiro presidente do TPIJ e o primeiro presidente do Tribunal Especial para o Líbano, nada na Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, concluída em Paris a 11 de dezembro de 1948, autorizaria a aplicação do tipo penal do genocídio apenas quando um grande número de vítimas estivesse envolvido.

O crime de genocídio não se caracteriza apenas quando um grande número de pessoas morre. Ele tampouco deixa de se configurar quando o número de vítimas de um conflito armado é relativamente pequeno em relação a casualidades médias de uma guerra. E, como qualquer tipo penal, não é aplicado por analogia.

Para que ocorra, é preciso que haja o encontro de seus elementos objetivos com o elemento subjetivo, tampouco bastando a existência de apenas um deles.

Seriam elementos objetivos do crime de genocídio: morte de membros do grupo; lesões graves à integridade física ou mental dos membros do grupo; sujeição intencional do grupo a condições de existência destinadas a resultar na sua destruição física total ou parcial; medidas destinadas a prevenir nascimentos dentro do grupo; transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo.

O elemento subjetivo seria a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso.

Além dos atos de genocídio, também são punidos à luz da Convenção onusiana: a conspiração para cometer genocídio; o incitamento direto e público à prática de genocídio; a tentativa de genocídio; e a cumplicidade no genocídio.

Perante o Dica, configura-se clara a ação genocida do Hamas nos assassinatos cometidos e, em particular, nos crimes sexuais barbaramente perpetrados, constatando-se a existência dos elementos objetivos e subjetivos do crime.

Conclusão
O romancista polonês e Nobel de Literatura Czeslaw Milosz, na obra “Mente Cativa”, denuncia o que, para ele, configurava a suscetibilidade do pensamento crítico a doutrinas sociopolíticas que pregam um terror totalitário por concessão à uma reação ao Ocidentalismo. Referia-se, em sua época, à sedução do stalinismo. Talvez sua tese não tenha ficado anacrônica. Para Milosz, “[o] conhecimento popularizado caracteristicamente cria um sentimento de que tudo é compreensível e explicável. É como um sistema de pontes construídas sobre precipícios. É proibido olhar para baixo, mas isso, oh, meu Deus, não muda o fato de que existem”.

O precipício que representa a ideologia do Hamas, da Jihad Islâmica, do Iisi, inter alia, não deixa de ser profundo e perigoso porque entre suas pontas foi lançada uma frágil e inconsistente ponte de cordas.

Deixar de reconhecer e de requerer do Hamas, de seus líderes e apoiadores, a responsabilidade cabível pelo genocídio perpetrado é a incoerência que roerá essa corda e que precipitará a todos a um abismo que, em princípio, somente é atraente porque era distante. Como todos os abismos.

*Clarita Costa Maia é Consultora Legislativa do Senado Federal