A estética, a linguagem e o ovo da serpente: a necessidade de banimento da linguagem e da criptolinguagem do extremismo político
Por Clarita Costa Maia*
No dia 21 de fevereiro de 2024, o Conselho Pleno da Ordem dos Advogados do Brasil aprovou, à unanimidade, a alteração do art. 20 do Regulamento Geral da Advocacia, previsto na lei 8.906, de 4 de julho de 1994, que dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil.
Na origem, o dispositivo, caput, estabelecia, tão-somente, o texto do compromisso a ser prestado perante o Conselho Seccional, a Diretoria ou o Conselho da Subseção para que o ato de inscrição principal no quadro de advogados se consumasse. Nenhuma menção era feita à ritualística ou à disposição física do requerente no ato do juramento. Nada obstante, era costumeiro que fosse associado à chamada saudação “à romana”: a extensão frontal do braço direito rígido, elevado a, aproximadamente, 135 graus em relação ao eixo vertical do corpo, com a palma da mão voltada para baixo e os dedos se tocando. Com a alteração, tem-se a formalização da ritualística: o compromisso é lido em pé, com a mão direita do requerente sobreposta ao coração.
A “saudação à romana” já foi observada em alguns outros momentos pontuais da vida cívica brasileira, o que, de forma equivocada, culminou na impressão de que era a postura regular, sagrada pelo ordenamento jurídico e pela tradição. Até que, no dia 2 de novembro de 2022, uma situação altamente controversa ocorreu na cidade de São Miguel do Oeste, Santa Catarina. Durante uma manifestação política, alguns dos participantes fizeram o cumprimento em contexto que ensejou a interpretação de se tratar, em realidade, de uma alusão ao “Sieg Heil”. A saudação nazista, apelidada pela frase entoada e que, em português, significa “Salve a Vitória” ou “À vitória”, mimetiza a “saudação à romana”, com algumas poucas variações. De sê-lo, o havido se trataria de uma apologia ao nazismo, o que é vedado pelo art. 20 da lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor.
Havia um contexto para a cautela despertada a partir da manifestação de São Miguel do Oeste: Santa Catarina é um Estado da federação conhecido por ser a base de diversas células neonazistas ativas e altamente perigosas. Já no ano de 2020, a Profa. Dra. Adriana Abreu Magalhães Dias, especialista na pesquisa acadêmica do extremismo político, constatou o aumento de 23% desses núcleos no Estado em contexto de número já alarmantes: estimavam-se 11,8 células neonazista por milhão de habitante no estado do Sul, contra 1,9 por milhão no do Sudeste.1 Não causa espécie de que Santa Catarina seja, também, a unidade subfederada com o maior índice de denúncias da prática do racismo antissemita2.
Em 7 dezembro de 2022, portanto, pouco mais de um mês após a manifestação de São Miguel do Oeste, na maior operação policial havida na Alemanha desde o fim da Segunda Guerra Mundial, um grupo autointitulado “Cidadãos do Reich” foi preso por suspeita de organizar um golpe de Estado, que incluía a previsão de invasão do Parlamento3. Um de seus líderes, o ex-militar Rüdiger Wilfred Hans Von Pescatore, tem empresas em Santa Catarina e um histórico de ações suspeitas de arregimentação de pessoas para fins de extremismo político também no Brasil4.
À época da manifestação de São Miguel do Oeste, foi aberto procedimento investigatório criminal pelo Ministério Público de Santa Catarina (MPSC), arquivado pela Vara Criminal da Comarca após a 40ª Promotoria de Justiça da Capital apurar que o gesto teria sido “uma resposta dos manifestantes ao chamamento feito pelo orador que conduzia o ato para que todos erguessem a mão para emanar energias à frente (em direção à Bandeira nacional ou ao quartel do Exército)”, o que seria “culturalmente comum” na região5.
Até a decisão pelo arquivamento, opiniões grassavam nas redes de que o gesto tinha pleno respaldo legal e normativo e que se tratava, tão-somente, da saudação à Bandeira Nacional. Impressão equivocada. O art. 30 da lei 5.700, de 10 de setembro de 1971, que dispõe sobre a forma e a apresentação dos símbolos nacionais, determina que, nas cerimônias de hasteamento ou arriamento, nas ocasiões em que a Bandeira se apresentar em marcha ou cortejo, assim como durante a execução do Hino Nacional, todos devem tomar atitude de respeito, de pé e em silêncio, os civis do sexo masculino com a cabeça descoberta e os militares em continência, segundo os regulamentos das respectivas corporações, sendo vedada qualquer outra forma de saudação. Nenhuma menção, portanto, à “saudação à romana”.
A parte final do caput do art. 30, “segundo os regulamentos das respectivas corporações”, em tese, para os polemistas, justificaria o tratamento especial conferido pelo art. 217 do Decreto 57.654, de 20 de janeiro de 1966. Ocorre que o dispositivo determina que as cerimônias cívicas para entrega aos brasileiros, em idade de prestação do Serviço Militar, dos Certificados de Dispensa de Incorporação deverão ser realizadas com o braço direito estendido horizontalmente à frente do corpo, mão aberta, dedos unidos, palma para baixo, seguido de compromisso.
Além de a hipótese de uso da “saudação à romana”, na vida cívica brasileira, ser imensamente restrita às situações de dispensa de incorporação aos quadros militares, ela tampouco é “à romana”: o braço direito deve ser estendido horizontalmente, em angulação de 90º, portanto. Arremete-se com o questionamento sobre a regularidade da vigência do Decreto, anterior à Lei. Não há, portanto, nenhum respaldo legal para o uso da “saudação à romana” em nenhum contexto da vida cívica nacional.
Para arrematar, a própria existência de uma “saudação à romana” é confrontada pelo atual estado do debate historiográfico. O filólogo germano-americano, estudioso da antiguidade clássica e historiador de mídia, Martin M. Winkler, publicou, em 2009, o livro A Saudação Romana: Cinema, História e Ideologia, oportunamente relançado em 2021, quando uma onda de extremismo político ganhou fôlego renovado em alguns países. No livro, ele revela não haver qualquer indício da existência dessa saudação, tal e qual retratada pela cultura popular, no contexto militar. As imagens de estátuas, pinturas e mosaicos que espelhavam gestos de cumprimento com a mão direita possuíam outros contextos e não a mesma ritualística. Para Winkler, a própria existência da “saudação à romana” foi uma elaboração sustentada e propagandeada por grupos de extrema direita, que a utilizaram às largas6, em uma tentativa de respaldar, no mito de um império honrado, eurocêntrico e benigno, as suas agendas: nazismo alemão, fascismo italiano, falangistas espanhóis, integralistas brasileiros, e tantos outros grupos de ultradireita e ultranacionalistas, acrescentando seus temperos regionais.
A invenção da “saudação à romana” correspondia a um programa de criação de uma estética e de uma linguagem nazista (metodologia utilizada pelos fascistas e ultradireitas do mundo)7 fortemente sedutora, motivadora e imagética.
Se o arquivamento do procedimento investigatório criminal no rumoroso caso de Santa Catarina pareceu justo, à luz das sensibilidades culturais, também é razoável e correto afirmar que, no mesmo vídeo em que se pode identificar pessoas de boa-fé incorporando o gesto, aparecem figuras que despertam a justa desconfiança de que o momento foi utilizado, de maneira oportunista, para a propaganda fascista, “higienizada” pela praxe e um contexto que favorecia o benefício da dúvida.
Esse ardil não é novidadeiro na rotina dos grupos de extremismo político e se soma com outras estratégias de estética e linguagem. Após a vitória dos Aliados contra o Eixo, uma geração de leis e normas de banimento de símbolos nazistas e fascistas espraiou-se pelo mundo, proibindo as simbologias ostensivas e mais óbvias8. Para evitar a o enquadramento penal, esses grupos passaram a resgatar símbolos ainda mais antigos, remissivos aos momentos exordiais da formação dos grupos de extremismo político nos mais diversos países (a Alemanha como foco principal) e a desenvolver uma criptolinguagem própria para a comunicação, a propaganda, a arregimentação de membros e o concerto de ações, sobre os quais se debruçam a cooperação internacional no setor de inteligência para a prevenção da criminalidade.
Essa criptolinguagem é mutante, pelas mesmas razões por que foi criada: a busca pela ação fora do radar das instituições policiais internacionais. Todavia, já se tem por conhecidas algumas correspondências: 88, em referência à oitava letra do alfabeto, para significar “Heil Hitler”9, bem como aos 88 preceitos do Wotanismo, religião neopagã supremacista branca criada por David Lane10; o leite, como símbolo da supremacia branca11; 14 (Quatorze), referência a um slogan do líder da supremacia branca David Lane que consiste frase de 14 palavras “Devemos garantir a existência do nosso povo e um futuro para as crianças brancas”; BH ou 28, podendo significar “Blood and Honor”, o termo na atual língua franca para “Blut und Ehre”, mantra comum do nazismo; o símbolo Órion, que significa “Nossa raça é nossa nação”; RaHoWa (Racial Holy War, ou “Guerra Santa Racial”); ROA (“Raça acima de tudo”); WP/WS/WN, que significam “orgulho branco” ou “poder branco”, dentre vários outros.
O atual desafio dos ordenamentos jurídicos nacionais é o de aperfeiçoamento de sua legislação penal, não apenas para incorporar a estética e a linguagem de extremismo político ostensivas e que, eventualmente, não foram abarcadas, mas também banir a semiótica e a criptolinguagem extremistas, que servem como os famosos “apitos de cachorro” para os conversos a essas ideologias desajustadas com o estado democrático de Direito.
O Regime Nazista traumatizou o mundo, mas não menos a própria Alemanha, que, desde o fim da Segunda Guerra, tem demonstrado esforços genuínos e sérios de desnazificação e prevenção do surgimento e consolidação de grupos de extremismo político. Com a distinção de possuir inegável experiência no tema do combate ao extremismo, a Alemanha oferece um razoável caminho de atualização legislativa.
A Seção 86ª, intitulada “Divulgação de Meios de Propaganda de Organizações Inconstitucionais”, foi adicionada ao Código Penal Alemão com a finalidade de combater o extremismo político12. Por partidos ou organizações passíveis de serem julgadas inconstitucionais pela Corte Federal Alemã, entende aquele ordenamento, inter alia, aquelas dirigidas contra a ordem constitucional ou contra a ideia de entendimento internacional13.
Na primeira categoria, entrariam todos os movimentos que, no Brasil, podem ser enquadrados no Título XII do Código Penal, que define os crimes contra o Estado Democrático de Direito. A atualização e a substituição alvissareiras da antiga Lei de Segurança Nacional perdeu a oportunidade, todavia, de criminalizar a propaganda antidemocrática e incorporar, em seu guarda-chuva, a possibilidade de alcançar os grupos de extremismo, cuja agenda política não se limita ao supremacismo racial ou cultural, mas, também, por força dele, à alijar grupos inteiros da vida cívica.
Na segunda categoria, entrariam os movimentos de imperialismo internacional de toda sorte (p.e, alemão, russo, iraniano, islâmico), porquanto, como consequência do imperialismo político, a exclusão, cívica ou física, de diversos grupos, hoje abraçados no pluralismo político. O imperialismo político internacional nunca se trata, tão-somente, de uma legítima propugnação pela troca de comando.
A Seção 86ª não apresenta uma lista exaustiva de símbolos e saudações proibidos, tampouco ela existe por parte do Poder Público. Trata-se de uma lista aberta à qual são agregados grupos de acordo com a dinâmica política e a prova dos fatos. A praxe e a jurisprudência alemãs, todavia, a têm aplicado para proibir símbolos fascistas, nazistas, comunistas, bem como extremistas islâmicos e militaristas russos.
Assim, as bandeiras do Hamas, da Frente Popular para a Libertação da Palestina, da Jihad Islâmica Palestiniana e do Hezbollah, que, na Alemanha, são classificadas como organizações com propostas de imperialismo global, contrárias ao entendimento internacional e, por fim, terroristas, são proibidas.
Em um passado não mundo distante, a semiótica nazista de um vídeo publicado por uma autoridade brasileira para tratar da proposta da nova política cultural nacional foi, com justeza, identificado como uma apologia ao extremismo14. Sucederam-se a ele, manifestações com bandeiras ultranacionalistas na Avenida Paulista15 e outras simbologias de difícil aceitação nacional.
É uma prova da saúde cívica e moral nacional que esses episódios tenham despertado a reação pública. Da mesma forma deve ser entendida a reação indignada à constatação do uso de camisetas do grupo terrorista Hamas em manifestações públicas nacionais e nas premissas de prédios públicos, em eventos oficiais, grupo cuja “carta constitucional” prega e exorta o genocídio contra um grupo étnico, excedendo, em muito, ao direito legítimo de oposição política16.
Temos muito a aprender com a história. Temos muito a aprender com a experiência. Mas temos mais ainda a responder ao bom senso e à moralidade. Que o bom exemplo do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil inspire os legisladores. A conivência, o consentimento ou mesmo o apoio tácito dos espectros políticos da direita e da esquerda com as manifestações de extremismo político, ainda que como parte de uma estratégia eleitoral, ainda causarão profunda vergonha na prestação de contas da História.
*Clarita Costa Maia é Consultora Legislativa do Senado Federal
Fonte: Migalhas