Marcus Peixoto, Consultor Legislativo do Senado Federal e pós-doutorando do Observatório para Qualidade da Lei, Faculdade de Direito/UFMG.
Luiz Ugeda, Membro do Porto Advogados e presidente da Comissão Especial de Geodireito da OAB/SP.
Roberto Olinto Ramos, Ex-presidente do IBGE, é pesquisador associado do Ibre/FGV.
Fabiana de Menezes Soares, Coordenadora do Observatório para Qualidade da Lei, Faculdade de Direito/UFMG.
Presidente, a experiência mundial ensina que políticas públicas geográficas costumam ser filhas de grandes crises.
O terremoto de Lisboa, de 1755, fez com que o Marquês de Pombal, secretário de Estado português, adotasse diversas técnicas que culminariam na criação da cartografia e da sismologia como as conhecemos atualmente. Para combater a cólera na Londres de 1854, sir John Snow desenvolveu o primeiro Sistema de Informação Geográfica da história.
O presidente da Indonésia, Joko Widodo, criou em dezembro de 2018 a política pública do mapa único (One Map Policy) para defender um país-arquipélago que, na prática, tem terremotos todos os dias. O vulcão Anak Krakatoa acabou de entrar em erupção na Indonésia, mas eles têm um plano de contingenciamento que ajudará a salvar muitas vidas.
Neste século, a informação é matéria-prima de poder e as geotecnologias são um meio eficaz para seu exercício. E o mapeamento da movimentação das pessoas via celular tem se tornado uma ferramenta de informação imprescindível, com um sem número de possibilidades, entre elas a dos aplicativos de transporte. Há alguns anos, esta prática é comum mundo afora para empresas que adquirem dados das companhias telefônicas e desenvolvem ações de Geomarketing como, p. ex., saber por onde os celulares mais se deslocam dentro da cidade ou de um shopping center, decidir sobre a compra de um imóvel ou criar um outdoor e até mesmo uma campanha publicitária. Ou seja, estas informações só estão nas mãos de quem pode pagar os valores que as companhias de telefone celular julgam unilateralmente ser devidos, e devem ser fornecidas de forma agregada, estatísticas e anônimas, em respeito à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e ao Marco Civil da Internet.
A novidade é que, com a covid-19, esta prática se transformou rapidamente em política pública. E, segundo dados da GPS World, no final de março de 2020, 19 países já usavam esta técnica para monitorar e conter a covid-19. O problema é que, no Brasil, por não existir a cultura do Geocompliance, a sociedade desconhece se quem controla estes dados realmente observa os direitos dos cidadãos, pois eles não são abertos para quem não pode remunerar os valores pleiteados pelas companhias de telefonia celular. A sociedade desconhece quais são os dados reais que governos estaduais e municipais podem estar utilizando neste momento e se eles respeitam a privacidade das pessoas.
A emergência do covid-19, bem como uso de informações nas quais se desconhece seu conteúdo real, sugere que existe uma oportunidade única para que o Presidente edite uma Medida Provisória melhor disciplinando o art. 21, XV, da Constituição Federal e orientando o País sobre o que viriam a ser a Geografia e a Cartografia oficial, já que as leis em vigor não dão conta dos novos ambientes institucional e tecnológico da geoinformação.
Esta regulamentação constitucional por MP fortalece o Estado, pois mostra à população que seus dados individuais não estão sendo violados. Incentiva toda uma indústria de mapeamento, que envolve uso de drones, aerolevantamento e satélites, incluindo a viabilização econômica da base aeroespacial de Alcântara e da indústria geoespacial brasileira. Faz com que os cidadãos não sintam que seus dados pessoais são peixes coloridos no aquário dos monitores do governo ou de pessoas mal-intencionadas.
No mapeamento da doença, o país que não se programar, será programado; é uma questão de geopolítica, tema muito caro aos militares. Basta notar que a Apple e o Google, rivais no mundo dos smartphones e nos sistemas de mapeamento, decidiram se unir para criar uma tecnologia capaz de monitorar o avanço da covid-19. Não seria qualquer interesse global que faria estes gigantes se juntarem, Presidente. O desafio é enorme, para além das conclusões naturais da doença, e tornou-se urgente uma política pública geográfica brasileira que reinstitua a Comissão Nacional de Cartografia (Concar) pela via legal e possa identificar um gestor com personalidade jurídica pública para conduzir as diretrizes desta nova Concar.
Organizar o país por meio de uma política pública de geolocalização, neste momento, tem base constitucional e força para salvar vidas e reativar a economia. Uma MP neste sentido, que parece atender aos pressupostos de relevância e urgência decorrente da covid-19, fortalece o Estado e traz segurança, com dados, para fundamentar as ações governamentais e tranquilizar a população.
Fonte: Estadão, 14 de abril de 2020