Artigo produzido por Fernando Veiga Barros e Silva, consultor legislativo do Senado Federal.
Nos anos 2000, o governo chinês mudou, significativamente, sua estratégia econômica. De um país que impunha drásticas restrições aos investimentos de empresas chinesas no exterior, passou a estimular, radicalmente, esse exato tipo de investimento, em especial por parte de empresas estatais – as SOE’s (“state-owned enterprises”). Um dos motores dessa nova estratégia foi a acumulação gradual, pela China, de crescentes reservas internacionais em moeda forte. O então modelo tradicional de gestão das reservas internacionais, calcado na aplicação dos recursos em ativos financeiros de baixo risco, mas de insubsistente rentabilidade, a exemplo dos títulos da dívida pública norte-americana, deu lugar a uma agressiva política chinesa de investimentos diretos no exterior.
Em regra, investimentos realizados em atividades de caráter industrial e comercial, em terras cultiváveis, em sistemas de transporte de cargas e escoamento de produção pelo mundo afora, em projetos de geração de energia, na aquisição de participações societárias e em direitos de exploração de recursos naturais, tudo sempre ligado às estratégias de globalização de suas empresas, de diversificação de suas fontes de fornecimento de insumos e matérias-primas e de ampliação e consolidação de mercados, no exterior, para marcas, produtos e serviços chineses.
Deu-se início, assim, a um vigoroso e virtuoso círculo de causas e efeitos econômicos, tanto em âmbito interno quanto externo.
Unindo seus próprios capitais, na forma de investimentos no exterior, a um bem direcionado esforço de produção e comércio, alicerçado por uma tremenda logística, a China passou a criar, noutros países, como que “zonas de processamento” de sua própria produção de bens e serviços. E essas “zonas de processamento” estrangeiras, cada vez de forma mais intensa e ampla, têm feito da China o principal parceiro comercial, o maior credor e o mais presente investidor em teatro composto por um imenso número de países.
Concomitantemente, essa revolução econômica e financeira tornou possível criar um equilíbrio dinâmico entre os fluxos de moeda estrangeira que entravam na China e que dela saíam. Isso se fez não apenas com ganhos para a estabilidade da própria moeda chinesa, mas, também, com vantagens comparativas sob o ponto de vista do perfil de acumulação, de remuneração e de liquidez dos ativos chineses denominados em moeda estrangeira, notadamente em face de seus passivos perante o resto do mundo.
A China consolidou sua posição como investidor e credor líquido mundial. Tornou-se não apenas grande exportadora de bens e serviços, mas, lado a isso, a origem de capitais internacionais de fabulosa envergadura. Ambos os movimentos, intimamente relacionados entre si, reforçaram-se mutuamente. A exportação de capitais chineses robusteceu os saldos da balança de transações correntes do país, assim como as transações correntes, por seu turno, passaram a retroalimentar a própria exportação de capitais, com ainda maiores níveis de liquidez em moeda conversível.
Um dos símbolos dessa estratégia é representado pela China Investment Corporation (CIC). Criada em 2007, essa agência de investimentos assumiu a linha de frente da administração das reservas internacionais chinesas. Passou a buscar a melhor simbiose entre capitais, produção e comércio, assim como, nesse contexto, a garimpar oportunidades mais vantajosas para a aplicação das reservas chinesas em moeda forte.
No plano interno, somou-se à estabilidade monetária, propiciada por uma bem ajustada política de relações financeiras com o exterior, a vultosa ampliação dos mercados para produtos e serviços chineses. A economia chinesa passou a crescer ao ritmo da conquista de novos mercados, em todos os cantos do mundo, razão pela qual, já em 2013, figurava como o principal parceiro comercial de 130 países, aproximadamente. Não por outra razão, o país ainda logrou alcançar e manter, sustentavelmente, elevados níveis de crescimento, exibindo ritmo de expansão das atividades econômicas que lhe permitiu dobrar o próprio PIB a cada oito anos. Nesse processo, cerca de 800 milhões de chineses foram incorporados ao mercado de trabalho, muitos deles antes submetidos a um virtual quadro de miséria.
De simples concepção, mas muito bem urdida e trabalhada, essa estratégia conferiu à China números que refletem um exuberante desempenho econômico. Em 2018, seus principais parceiros, no comércio internacional, foram: a União Europeia (corrente de comércio de 681 bilhões de dólares); os Estados Unidos (corrente de comércio de 631 bilhões de dólares); a Associação das Nações do Sudeste Asiático (corrente de comércio de 575 bilhões de dólares); o Japão (corrente de comércio de 327 bilhões de dólares); a Coréia do Sul (corrente de comércio de 313 bilhões de dólares); Hong Kong (corrente de comércio de 310 bilhões de dólares); e Taiwan (corrente de comércio de 225 bilhões de dólares). Lado a isso, verifica-se que, desde 2016, a China continental e Hong Kong figuram, combinadamente, como o maior credor líquido internacional, por capitais de dívida e de risco. Exibiram, em 2019, ativos internacionais líquidos de 3,7 trilhões de dólares, contra não menos expressivos 3,3 trilhões de dólares do segundo colocado no “ranking” – o Japão.
A China não dá sinais de que venha a rever ou a abandonar essa estratégia. Ao contrário, deve continuar a aprofundá-la, como tem feito até aqui. Aos gigantescos ganhos de escala já obtidos, proporcionados pela condição de maior economia fabril do mundo, sua intenção parece ser a de ampliar os próprios padrões de produtividade, permitindo-lhe não apenas seguir crescendo, mas, também, iniciar trajetória de efetivo enriquecimento. As evidências apontam para pesados investimentos em novas tecnologias, inclusive mediante agressivas estratégias de aquisição do controle societário de grandes e importantes empresas, principalmente europeias e americanas.
Paralelamente, a condição de segunda potência econômica global, quiçá de primeira, deve revelar a nova feição da política externa chinesa. De agora em diante, o “soft power” chinês deve insinuar-se de forma crescente pelo mundo, muito favorecido por iniciativas desastradas e eventos indesejáveis, como a campanha que ganhou notoriedade a partir do slogan “America First”, ou o recrudescimento de movimentos xenófobos, da discriminação étnica, do radicalismo religioso e da polarização política, inclusive em algumas das principais democracias do assim chamado Ocidente.
Como não poderia deixar de ser, a atual crise sanitária representou um difícil teste para a estratégia econômica chinesa. Mas, contrariando a trajetória dos desdobramentos na maioria dos países, a China parece ter-se demonstrado ainda mais resiliente do que se supunha. A expectativa é de que sua economia cresça ainda em 2020, sendo lícito supor que esse crescimento, em larga medida, será impulsionado por uma base de produção diversificada, por mercados mundiais amplos e em contínua expansão e por uma política de capitais, principalmente de investimentos no exterior, absolutamente consciente e focada no propósito de gerar vastas sinergias econômicas.
Se você chegou até aqui, agradeço a gentileza da leitura do artigo. Seus comentários serão muito bem recebidos.
Caso você deseje aprofundar-se no tema, pode consultar os relatórios do Congressional Research Service (CRS), do Congresso norte-americano, especialmente o relatório “China’s Economic Rise: History, Trends, Challenges, and Implications for the United States”, assim como as bases de dados do Fundo Monetário Internacional, onde você encontrará dados sobre capitais internacionais.
A Alesfe não é responsável pela opinião dos autores contida nos artigos que reproduz em seu sítio na Internet.