Autores

Victor Carvalho Pinto – Consultor legislativo do Senado Federal, Doutor em Direito Econômico e Financeiro (USP) e Coordenador do Núcleo Cidade e Regulação do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper

Luiz Ugeda, Pós-Doutor em Direito (UFMG) e doutor em Geografia (UnB). Advogado e Geógrafo. CEO da Geodireito e da Geocracia

Resumo: Em artigo publicado pelo O Estado de S. Paulo, o consultor legislativo do Senado Federal – Victor Carvalho Pinto, e o CEO da Geodireito e da Geocracia, Luiz Ugeda, analisaram a ligação da eletricidade com assentamentos informais.

No centro da discussão promovida pelos especialistas, estiveram os conflitos existentes entre a responsabilização no âmbito da geração energia – presentes nas diferentes diretrizes abordadas pelas abordagens: setorial – de ligações novas a rede de distribuição; e urbanística, da infraestrutura como elemento indutor da ocupação do território.

Leia abaixo a íntegra do artigo:

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina determinou, por unanimidade, que a concessionária de energia elétrica Celesc se abstivesse de fazer novas ligações quando não houver prévia apresentação de alvará de construção ou habite-se do imóvel solicitante. A decisão reflete o conflito entre uma abordagem setorial, de ligações novas a rede de distribuição, e uma visão urbanística, da infraestrutura como elemento indutor da ocupação do território. A primeira, promovida pela União, vê o fornecimento de energia como um direito do cidadão, enquanto a última, de responsabilidade dos estados e municípios, considera a eletrificação indiscriminada como um fator de desordenação do território que, no limite, inviabiliza os planos diretores municipais.

Se por um lado o setor de saneamento permaneceu como competência local, o Código de Águas de 1934 federalizou o sistema elétrico, até então regulado pelos municípios. Esse modelo permitiu que o Brasil criasse um dos mais robustos sistemas hidrelétricos do mundo. A ponta do dedo no interruptor faz com que o elétron gerado em Foz do Iguaçu, no Rio Madeira ou no Rio São Francisco chegue a São Paulo ou ao Rio de Janeiro em milésimos de segundo, integrando o território nacional, o que seria impensável se a competência fosse meramente municipal.

Na ponta da distribuidora, que detém postes federais em cima de calçadas municipais, uma vez instalada a ligação oficial de energia elétrica, o beneficiário passa a ter uma conta de luz em seu nome, que é um importante comprovante de residência para inúmeras outras finalidades, como obter crédito financeiro, matricular o filho na escola e obter emprego, ou seja, ter cidadania.

No modelo originalmente adotado, as ligações novas de energia elétrica criaram, entretanto, condições objetivas para que as pessoas se instalassem em locais muitas vezes inadequados, como encostas, margens de rios, propriedades alheias, áreas de risco e de proteção ambiental e, automaticamente, recebessem energia elétrica instalada por concessionárias federais.

Muitos assentamentos humanos assim formados produziram poluição dos mananciais de água que abastecem a cidade, ocuparam áreas alagáveis ou provocaram a erosão do solo, que resultou em deslizamentos com centenas de mortos e milhares de desabrigados.

Com o tempo, as recorrentes tragédias ocasionadas pela ocupação de áreas de risco exigiram que a instalação de redes de energia elétrica observasse o planejamento urbanístico. Essa conclusão é inevitável quando se considera que a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, instituída pela Lei 12.608, de 2012, tem entre seus objetivos o de “combater a ocupação de áreas ambientalmente vulneráveis e de risco e promover a realocação da população residente nessas áreas”, e atribui aos municípios a responsabilidade de “promover a fiscalização das áreas de risco de desastres e vedar novas ocupações nessas áreas”.

Quanto aos assentamentos existentes, é preciso considerar que o país conta, desde 2009, com uma legislação específica sobre regularização fundiária. A Lei 13.465, de 2017, que atualmente disciplina o assunto, admite a regularização (apelidada de “Reurb”) de “núcleos urbanos informais consolidados”, mas também tem entre seus objetivos o de “prevenir e desestimular a formação de novos núcleos urbanos informais”. Cabe ao município decidir quais núcleos deverão ser regularizados e elaborar um projeto urbanístico para cada um, do qual deverão constar as “soluções para questões ambientais, urbanísticas e de reassentamento dos ocupantes, quando for o caso”, além estudos ambientais e para situações de risco.

Essa realidade normativa foi reforçada no plano infralegal pela Resolução Normativa da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) nº 1.000, de 7 de dezembro de 2021, que estabeleceu as regras de distribuição de energia elétrica e incorporou essas disposições da legislação sobre regularização fundiária. Exigiu-se que as prefeituras encaminhassem à distribuidora toda a documentação relativa à Reurb e que esta somente venha a iniciar as obras depois do registro imobiliário do projeto urbanístico.

A Resolução ainda admite que a distribuidora possa realizar o atendimento temporário de unidade consumidora localizada em “núcleo ou assentamento clandestino ou irregular, ocupado predominantemente por população de baixa renda”, independentemente de Reurb, o que pode contribuir para a formação de novos assentamentos informais. Esse atendimento, entretanto, é condicionado à existência de solicitação ou concordância expressa do “poder público competente”, ou seja, do município.

Espera-se que as prefeituras se utilizem dessa importante norma federal para evitar, a todo custo, episódios como o ocorrido recentemente em Petrópolis, onde a ocupação irregular ceifou dezenas de vidas após evento climático adverso. Além de aplicar essa norma às novas ligações, é preciso que todas as que já existem sejam revistas, a fim de que sejam mantidas apenas aquelas que contem com expressa anuência dos órgãos locais, considerados os aspectos urbanísticos, ambientais e de defesa civil. Os municípios poderiam, inclusive, enviar às distribuidoras, de forma prévia, o mapeamento de suas áreas de risco, onde não aceitam que haja novas ligações, por força dos prejuízos que podem acarretar aos indivíduos e a coletividade.