O foco do Governo em depositar na retirada de direitos a solução única para as questões fiscais do país mostra uma visão limitada sob o ponto de vista econômico, e pode representar uma espécie de ‘cobertor curto’ – considerando que as medidas podem implicar em diminuição do PIB e da arrecadação tributária, pressionando a capacidade de o Estado servir a população.
Esses e outros apontamentos foram destacados no artigo do Consultor Legislativo do Senado Federal, Paulo Viegas, que, no mesmo material, chama a atenção para o fato de que a pressão sobre os servidores não se limita à PEC 32, conhecida como a PEC da Reforma Administrativa, mas também a outras pautas, como a PEC 186/2019, que deve ser discutida ainda neste mês de fevereiro.
O artigo não se limita aos questionamentos, mas também busca apresentar alternativas viáveis – e mais sustentáveis – para o equilíbrio fiscal da nação.
Confira abaixo a íntegra do artigo:
As reformas administrativas e potenciais consequências
Assim como ocorreu em outros países do mundo ocidental, em especial na Europa, as principais reformas econômicas implementadas pelo governo brasileiro nos anos recentes implicaram perdas de direitos para muitos trabalhadores, mas não resultaram em crescimento da economia, dos empregos e de renda. No Brasil, foi assim, sobretudo, com as Reformas Trabalhistas e da Previdência, cujos defensores prometeram resultados como a criação líquida de um número relevante e sustentável de empregos e o equilíbrio das contas públicas. Até o momento, tais resultados não se verificaram.
A despeito do malogro das promessas anunciadas, segue o ímpeto reformista. Nessa toada, foi apresentada pelo Poder Executivo a Proposta de Emenda à Constituição nº 32, de 2020, conhecida como a PEC da Reforma Administrativa. Seu propósito é rever a estrutura de cargos e salários do serviço público de forma ampla e permitir a substituição de cargos efetivos por cargos comissionados.
Mas não é apenas essa PEC que trata do tema. A PEC nº 186, de 2019, ou PEC Emergencial, da mesma forma, atinge direitos dos servidores públicos. Essa PEC foi apresentada por um grupo de Senadores e dispõe sobre medidas permanentes e emergenciais de controle do crescimento das despesas obrigatórias e de reequilíbrio fiscal no âmbito dos orçamentos dos governos federal, estaduais e municipais. Ao contrário do que muitos pensam, ela não foi idealizada para ajudar os governos a enfrentarem a pandemia de Covid-19, pois foi apresentada em novembro de 2019, anteriormente a essa crise.
A PEC nº 186, de 2019, cria cortes de despesas que devem ser, a priori, temporários – como a redução de salário de servidores e congelamento de concursos públicos. Tais cortes devem ocorrer quando as operações de crédito superarem as despesas de capital – mecanismo esse denominado de “gatilho”. É previsto que essa situação ocorra em 2021, e, uma vez aprovada a PEC, os cortes começarão já no presente exercício financeiro. Apesar da previsão de que a PEC tenha vigência de dois anos, as condições nela estabelecidas ensejam a possibilidade de se congelarem salários por muito mais tempo.
Ao que tudo indica, as soluções aventadas, nessas reformas, emanam da dificuldade de diálogo (ou mesmo do desinteresse em dialogar) com as camadas verdadeiramente privilegiadas da sociedade em busca de uma repartição mais justa do ônus associado ao equilíbrio das contas públicas. Essa dificuldade pôde ser constatada quando agentes políticos tentaram, recentemente, resgatar a ideia da CPMF, ou, ainda, quando parlamentares apresentaram projetos de lei para regulamentar a implementação do Imposto sobre Grandes Fortunas(IGF), previsto na Constituição desde 1988. Então, usando um jargão muito explorado recentemente no Brasil, “quem paga o pato” acaba sendo, de forma recorrente, os mais pobres e a classe média.
Como justificativa para atingir os servidores públicos, usam-se argumentos genéricos sobre o número excessivo desses trabalhadores. Nada mais equivocado. O relatório do Banco Mundial denominado “Um Ajuste Justo” aponta que não há excesso de servidores públicos por aqui. A razão entre a quantidade de funcionários públicos e a população no Brasil é de 5,6%.
Esse número é apenas levemente superior à média da América Latina, de 4,4%, mas bem inferior à média da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), de aproximadamente 10%. No mesmo sentido, conforme uma análise apresentada em 2021 pelo site Infomoney, a partir de dados da OCDE sobre o número de funcionários públicos relativamente ao total de trabalhadores dos países, o Brasil figura no final da lista, com 12% de funcionários públicos em relação ao total de trabalhadores do país. Esse percentual encontra-se, pois, muito abaixo da média dos países da OCDE, de 21%, ou mesmo de países nórdicos da Europa, reconhecidos pelos bons serviços públicos que oferecem, como Dinamarca e Noruega, com 35%, e Suécia, com 28%.
Em relação aos resultados prometidos, a percepção é a de que reformas dessa natureza não têm contribuído, nos mais diversos países, para um desenvolvimento mais justo. Ao contrário, elas tendem a ser concentradoras de renda, e não se revertem necessariamente em melhoria de condições de vida para a maior parte da população. Trata-se de medidas que tendem a reduzir o crescimento da economia a médio prazo, gerando mais desemprego, mais demanda por serviços do Estado (como saúde, educação, assistência social, segurança pública), e menor arrecadação tributária. Portanto, curiosamente, as medidas que são oferecidas para equilibrar as contas públicas acabam por deteriorar o equilíbrio fiscal num futuro próximo, além de piorar a vida de parcela considerável dos mais de 210 milhões de habitantes do País.
Em países que se implementaram reformas da mesma natureza, aí incluídos França, Itália e Espanha, a situação econômica não parece ter melhorado. Nesses três países, de acordo com informações do Banco Mundial, desde 2008, o PIB apresenta decréscimo e a pobreza aumenta, considerando-se valores atualizados em dólar. Ademais, a insatisfação com os governos desses lugares continuaram grandes e crescentes. O reflexo disso foi sentido com os resultados eleitorais um tanto erráticos, com a ascensão de ideais separatistas e a radicalização de movimentos extremistas na política europeia.
Ora, a busca pelo equilíbrio fiscal diz respeito à busca pelo ajuste das contas públicas. Como no caso da conta pessoal de cada um, quando as despesas (ou saídas de dinheiro) são maiores do que as receitas (ou entradas de dinheiro), são três as soluções possíveis: o aumento da receita; a redução dos gastos; e a contratação de empréstimos, para resolver a situação momentânea, com o intuito de pagá-los no futuro, quando as finanças estiverem melhores. No caso do Governo Federal, há ainda outra saída: o direito soberano de emitir moeda e, com ela, pagar suas contas.
Examinemo-las uma a uma.
1ª Solução) Aumentar a receita, ou seja, a arrecadação de tributos (impostos, taxas, contribuições), pois é essa a principal fonte de receitas dos entes públicos.
No caso do Brasil, o Poder Executivo e o Congresso vêm há anos trabalhando na aprovação de uma Reforma Tributária, visando simplificar os tributos e até reduzir a carga tributária sobre pessoas e empresas, o que causa surpresa, dada a necessidade de aumento de arrecadação. Sobre essa reforma, questionamentos diversos se apresentam, a exemplo dos elencados a seguir.
Como serão tratadas as dívidas tributárias hoje existentes, da ordem de algumas centenas de bilhões de reais? Como se reduzirá a sonegação fiscal (em tributos federais, estaduais e municipais), que em 2019 foi calculada em R$ 417 bilhões, em estudo publicado pelo Instituto Brasileiro de Pesquisa Tributária (IBPT)? As renúncias fiscais, também conhecidas como “gastos tributários”, que somaram, só na esfera federal, R$ 331 bilhões, de acordo com a Lei Orçamentária Anual da União para 2020, serão eliminadas? Note-se que, juntas, a sonegação e a renúncia fiscal representam perda de receita de mais de R$ 740 bilhões. Esse valor seria mais que suficiente para pagar os auxílios de enfrentamento à Covid-19 e dar um grande alento ao ajuste das contas públicas federais.
2ª Solução) Tomar empréstimos ou emitir títulos públicos.
Nesse contexto, cabe destacar que os juros internos praticados pelo Brasil nos títulos da dívida pública estão baratos atualmente, sendo uma opção muito menos onerosa para o financiamento do Estado do que teria sido há cerca de 10 ou 20 anos atrás. É portanto uma opção viável para se bancar, mesmo como medida complementar, o financiamento dos gastos e investimentos públicos federais durante um período, pelo menos durante o período da Pandemia em que vivemos.
Uma batalha a ser enfrentada provavelmente ocorreria com as empresas que atuam no sistema financeiro, que poderiam alegar dificuldades, considerando uma suposta “piora” dos sempre lembrados “fundamentos econômicos”, suportada por avaliação feita por bancos e agências de classificação de risco. Todavia, seriam essas análises do setor privado ainda confiáveis, depois de um flagrante vexame desempenhado na avaliação de empresas, bancos e fundos de investimento, que não previram a crise de 2008?
Além disso, não estaria o mundo hoje com excesso de poupança (literalmente, dinheiro guardado nos bancos) em busca de alternativas de investimento, ou opções pelo menos razoavelmente seguras, para destinar esse excesso de recursos financeiros? Diante desse quadro, nossas autoridades monetárias e financeiras não poderiam estar minimizando suas possibilidades de êxito se abraçassem esse desafio? Que interesses se contrapõem a essa opção?
3ª Solução) Emitir moeda, que pode ser usada com finalidade fiscal – para pagamento de compromissos pelo Governo.
O entendimento dominante nessa área sempre foi de que essa medida gerasse inflação, o que não é desejável. Ocorre que em casos recentes de alguns países não se verificou a presença de inflação depois de iniciativas de grande emissão de moeda, como foi o caso da ajuda econômica aportada pelos Estados Unidos e pela União Europeia aos mercados, após a crise de 2008.
Esse entendimento tem sido compartilhado por importantes economistas que abraçaram a denominada Teoria Monetária Moderna (TMM). Além deles, alguns ícones do pensamento econômico brasileiro, como é o caso de André Lara Resende, que ajudou na elaboração do Plano Real, também não rejeitam esse entendimento. Por que então se insistir em que a única solução para o equilíbrio fiscal repousa no corte de despesas? Que interesses influenciam essa crença? Esse questionamento deveria ser posto em discussão.
4ª Solução) Cortar despesas correntes. É nesse ponto que repousam as principais ideias das reformas administrativas apresentadas como solução à crise fiscal, com ênfase no corte de despesas com servidores públicos. Porém, não está claro, nesse contexto, qual o impacto fiscal dessas medidas, e nem a quem e como elas afetarão a vida das pessoas.
Nesse ponto, cabe deixar evidentes algumas distinções:
1º) os vínculos com servidor público efetivo não geram contratos; compreendem a abertura de edital para seleção por concurso de provas e títulos e um maior compromisso com o cumprimento de normas constitucionais e legais e, portanto, com o próprio Estado;
2º) os vínculos com servidores comissionados, isto é, não concursados, conferem aos agentes políticos a faculdade de poder escolher pessoas de confiança para realizarem trabalhos de seu interesse;
3º) finalmente, vínculos com funcionários terceirizados são gerados a partir de contratos com empresas privadas para fornecimento de serviços, o que importa, via de regra, para atribuições acessórias, com demandas variáveis a cada momento, e maior facilidade de saída em relação aos compromissos impostos pelos respectivos vínculos.
Se as reformas administrativas pretendem enfraquecer os servidores efetivos (ou seja, os concursados), há motivos para se supor que o principal prejudicado, ao final, seja o próprio Estado.
O que ainda resta de toda essa discussão?
Primeiramente, deve-se reforçar novamente o caráter concentrador de renda dessas reformas. Reduzir salários de servidores públicos, ou mesmo demiti-los, leva à menor circulação do dinheiro, considerando uma situação já estabelecida de equilíbrio econômico. Nesse contexto, não é só o servidor público que acaba sendo afetado, mas também o comércio e os prestadores de serviços com quem o servidor realiza transações de compra. Sofrerá, portanto, o pequeno comércio, o microempreendedor, os profissionais liberais, enfim, muita gente que depende do consumo desses servidores públicos, e, consequentemente, também, de toda a cadeia de gastos. Assim, pessoas vão sendo afetadas, numa reação em cadeia, impactando toda a economia. Cidades que têm muitos funcionários públicos deverão ter suas economias ainda mais afetadas, com possível declínio de suas arrecadações tributárias. É o caso de Brasília, Rio de Janeiro e capitais de diferentes Estados.
Em segundo lugar, tais reformas, ao piorarem a vida de muitas pessoas, tendem a gerar, indiretamente, quebras de contratos, e aumento da insegurança jurídica e dos custos de transação decorrentes da precarização do serviço público em bases técnicas. Ou seja, a fragilização do serviço profissional implicaria mais custos para transações privadas.
Finalmente, a partir da insistência de se buscar resolver a questão fiscal apostando todas as fichas sobre o corte de despesas sobre o funcionalismo, o Governo abraça uma solução reducionista para o problema. Adotando-a, o governo parece não acreditar na sua própria competência e capacidade de gerar crescimento econômico a partir de soluções menos penosas para a sociedade. Essa é uma questão que deveria ser repensada.