Autor: Vicente Costa Pithon Barreto

Na semana que passou, a Câmara dos Deputados foi palco de mais uma tentativa de manobra legislativa envolvendo o futebol brasileiro, capitaneada por dirigentes de clubes e chancelada pelas entidades de administração do esporte.

O Projeto de Lei n. 2.125, de 2020 e autoria do Dep. Artur Maia (DEM-BA), assumindo caráter de urgência, foi colocado na pauta de votação.

Concebido no sentido da mitigação dos deletérios efeitos econômicos da paralisação das competições – circunstância que inegavelmente traz uma série de dificuldades orçamentárias para os clubes -, o Projeto carrega dispositivos de alívio fiscal e financeiro para as combalidas contas das agremiações.

Alguns deles, de caráter transitório, podem ser justificados pela real dificuldade momentânea.

A suspensão do pagamento das parcelas do Profut e a transferência direta de recursos da Timemania, ambas provisórias, se coadunam a esse contexto, e estão atreladas à vigência da pandemia.

Entretanto, escudada por essa aparente pauta legítima, a proposta de texto legal do deputado baiano traz uma “armadilha” permanente para os direitos trabalhistas dos atletas, erigida sob pilares viciados de natureza formal e material.

Refiro-me à redução, pela metade, do piso da cláusula compensatória estabelecido pela Lei Pelé em caso de rescisão unilateral dos contratos por pate dos clubes, equivalente ao valor total dos salários devidos.

Inserida num projeto de mitigação de condições temporárias, a toque de caixa e sem qualquer discussão prévia com a parte interessada/atingida, esse verdadeiro “jabuti” (boiada?) desnuda o objetivo inconfessável de escamotear irresponsabilidades administrativas pretéritas, sob o falso argumento de adequação à CLT e a pretexto de superar uma crise de gestão que, efetivamente, não começou com a terrível pandemia que enfrentamos.

Absolutamente nenhum dirigente veio a público defender abertamente a medida. O relator designado se viu isolado na vã tentativa de justificar o injustificável. Por isso, e após legitima pressão da categoria, o projeto foi retirado, por enquanto, da pauta.

Algumas outras importantes questões técnicas fragilizam o seu mérito e se faz absolutamente necessário esclarecê-las para a comunidade esportiva, sobretudo àqueles que erroneamente a justificam pelos altos salários de uma minoria.

Não é à toa que a nossa legislação, com bastante precisão, define o contrato de trabalho esportivo como “especial”, dentro de um regramento também específico.

Trata-se, indubitavelmente, de um trabalhador que exerce uma função _sui generis_, com especificidades que a tornam sujeita a normas trabalhistas diferenciadas.

A quantificação da jornada de trabalho é um exemplo claro. É uníssona entre os dirigentes a negação do direito ao pagamento das horas extraordinárias e do adicional noturno, como seria devido ao trabalhador ordinário, bem como das horas de concentração. Reconhece-se, assim, a particularidade daquele trabalho. Mas agora desejam que a cláusula compensatória siga a regra geral da CLT, contida em seu art. 479. Dois pesos, duas medidas.

Ademais, a despeito da vida de astro de alguns poucos, a carreira do atleta de alto rendimento enfrenta, na especificidade de seu contexto, a exiguidade do tempo e a incidência de lesões, algumas permanentes e incapacitantes. Não se trata, sob nenhuma hipótese, de um trabalho ordinário.

Outro aspecto fundamental a ser abordado é sobre a natureza jurídica dessa cláusula rescisória e de seu equivalente. Com o fim do passe, trazido pela Lei Pelé, foi introduzida em nosso país a “cláusula penal desportiva”, como forma de compensar os clubes em caso de transferência de jogadores.

Após uma década e alguma polêmica sobra a sua valência indistinta em qualquer caso de rescisão unilateral, em 2011 ela foi desmembrada nas atuais cláusula indenizatória e cláusula compensatória desportivas.

A primeira, devida ao clube cedente em caso de transferência durante a vigência do contrato, tem valor previsto na lei de até 2.000 vezes o valor médio do salário do jogado. Continua sendo, dessa maneira, grande fonte de renda dos clubes nacionais, a mais importante para alguns deles.

Por outro lado, a cláusula compensatória devida ao atleta, em caso de dispensa durante a vigência do contrato, é referenciada em seu piso atual, ou seja, os valores salariais faltantes a serem pagos.

É, portanto, significativamente menor, na prática de mercado, que a contraparte dos clubes, em caso de rescisão/transferência. Dessa forma, se o jogador contratado tiver destacado rendimento esportivo, poderá render uma quantia MUITO MAIOR para a entidade de prática esportiva do que um possível prejuízo em caso de mau desempenho e dispensa do atleta.

Não há dúvidas de que o momento é muito difícil para os clubes, e exige sobretudo muita capacidade de negociação com atletas e fornecedores para o equacionamento de despesas.

Mas o fato é que a referida iniciativa legislativa revela, de maneira preocupante, que em vez de um processo modernizante, responsável e equilibrado de gestão, os nossos dirigentes ainda parecem focar no calote institucional como mecanismo de sobrevivência.

A despeito, portanto, de subsidiar o tal do “novo normal”, tão propalado em tempos pandêmicos, ela acaba por trazer à tona o “velho anormal” do nosso futebol.

Vicente Pithon é Consultor Legislativo no Senado Federal.