O Senado Federal enfrenta um momento delicado e decisivo na discussão sobre a reestruturação remuneratória dos seus servidores para o ano de 2026.
O direito à revisão geral anual de remuneração, estabelecido no artigo 37, inciso X, da Constituição, visa preservar o poder de compra dos servidores públicos, assegurando que os reajustes ocorram anualmente, sem distinção de índices, e tenham paridade entre ativos e inativos. Entretanto, desde 1998, esta revisão só foi concedida formalmente em 2002 e 2003, com índices irrelevantes para a recomposição real dos salários desgastados pela inflação.
A ausência do atendimento dessa garantia tradicional levou os órgãos públicos a adotarem reestruturações remuneratórias que, apesar do nome, apenas buscavam compensar perdas, num processo institucionalizado de burla à garantia de isonomia de reajustes para esse fim.
A situação agravou-se entre 2019 e 2022, em parte devido a medidas legais restritivas, como a Lei Complementar nº 173/2020, que proibiu reajustes até o fim de 2021, e a Emenda Constitucional nº 109/2021, que elevou o controle da despesa com pessoal ao patamar de um valor absoluto, em nome da “sustentabilidade da dívida pública”.
André Lara Resende, o maior economista brasileiro vivo, argumentou que o Brasil não tem problema de sustentabilidade da dívida pública, pois ela é toda em moeda nacional e menor do que dizem. Medida por critérios justos, a dívida pública seria reduzida em 28% do PIB O Brasil tem, de fato, um histórico de crises de endividamento, mas todas elas estiveram ligadas à dívida externa.
Articulistas denunciam um “descontrole fiscal”, que respaldaria medidas de arroxo fiscal. As estatísticas oficiais os desmentem. O governo federal fechou 2024 com déficit primário de 11 bilhões, menos de 0,1% do PIB, um dos mais baixos do mundo. Somos um modelo internacional de austeridade fiscal, e os que dizem diferente estão equivocados.
As causas dos aumentos da dívida pública estão nas despesas não-primárias, ou seja, financeiras. As taxas básicas de juros reais de 10% ao ano são fixadas pelo Copom, colegiado da diretoria do Banco Central, em nome de metas irrealistas de inflação fixadas pelo Conselho Monetário Nacional. Os juros reais de 10% exercem pressão sobre as finanças públicas, levando à contínua cobrança de medidas compensatórias de “ajuste fiscal”. Contudo, a despesa com pessoal, no Governo Federal, atinge pouco mais que a metade do limite permitido pela Lei de Responsabilidade Fiscal, e vem caindo ano a ano. Em 2026, ela será de menos de 3,4% do PIB.
Mas, enfim, voltando à defasagem salarial dos servidores, somente a partir de 2023 foram retomados reajustes visando compensar a inflação acumulada. De janeiro de 2015 a dezembro de 2024, o IPCA totalizou 74,88%. Para as carreiras do Poder Legislativo e Judiciário, os reajustes totalizaram 44,67%. Assim, apenas para recompor a totalidade da perda no período, e já computado o reajuste concedido em fevereiro de 2025, o reajuste adicional, necessário, seria de 21%.
De janeiro de 2019 a dezembro de 2024, o IPCA acumulado foi de 39,2%; porém, os reajustes concedidos, também já computado o reajuste de fevereiro de 2025, foram de 24,61%.
Não há reajuste previsto em lei para 2026, último ano da legislatura e do atual mandato presidencial, mas já tramitam proposições legislativas concedendo reajustes para servidores do Poder Judiciário de 8% em 2026, 8% em 2027 e 8% em 2028; e no Tribunal de Contas da União, reajustes diferenciados, expressivos, que, sem contar “parcelas indenizatórias”, totalizarão, apenas em 2026, reajustes médios de 40% a 43%, conforme a situação do servidor em termos de titulação.
Situação ainda mais dramática é a da perda inflacionária sobre os subsídios dos Ministros do STF, que são o “teto” remuneratório, hoje no valor de R$ 46.366. O teto, apenas para recuperar, em agosto de 2025, o mesmo valor que tinha em janeiro de 2006, quando era de R$ 24.500,00, deveria valer, pelo menos R$ 70.850. Os Deputados Federais e Senadores, em 2006, percebiam apenas R$ 12.847,20 e somente em 2009 foram equiparados aos Ministros do STF. Desde então, vigora a “paridade”.
Frente a essa perda, que afeta a toda a magistratura e ministério público, em vista do disposto no art. 93, V da Constituição, que prevê que os subsídios dos Ministros dos Tribunais Superiores corresponderão a noventa e cinco por cento do subsídio mensal fixado para os Ministros do Supremo Tribunal Federal e os subsídios dos demais magistrados serão fixados com diferença de cinco por cento entre os cargos, passaram a ser buscadas soluções “criativas”, de duvidosa legalidade.
A relevância do tema ultrapassa o âmbito do Senado. A defasagem do teto remuneratório afetou também o Poder Judiciário e o Ministério Público, suscitando debates sobre reajustes e reestruturações de carreira que impactam milhões de servidores em todo o país.
Recentemente, propostas foram apresentadas para aumento do teto e parcelamento de reajustes em três anos, e para reestruturações consideradas necessárias para atualização e valorização dos servidores.
No Poder Executivo, foram consignados no PLOA, em reservas próprias de contingência, R$ 10,3 bilhões para aumentos de despesas com pessoal em 2026, mas permanece a política de negação da revisão geral anual, que depende de projeto de lei de sua iniciativa
Projeto de lei enviado ao Congresso pelo Presidente do Tribunal de Contas contempla reajustes elevados já em 2026 de 43%, em média e, ainda, a criação de uma “Indenização por Regime Especial de Dedicação Gerencial”, a ser concedida exclusivamente aos servidores efetivos da Secretaria do Tribunal investidos em função de confiança, no percentual de até 25% da remuneração bruta mensal
Projeto de lei do Poder Judiciário prevê reajustes de 8% em 2026, 2027 e 2028 para seus servidores, além de alteração em gratificação de qualificação, com impacto estimado, em 2026, de R$ 2,7 bilhões.
No Senado, em fevereiro de 2025, o Ato do Presidente nº 9 seguiu um caminho preocupante, com a instituição, sem respeito aos limites legais, de uma indenização por “acúmulo de acervo administrativo, institucional ou jurídico” para servidores “no exercício de função relevante singular”.
Cogita-se, no momento, a proposição de pequeno reajuste de vencimentos em 2026 e a extensão dessa “indenização” para servidores ativos em cargos comissionados e funções de confiança.
Há no Senado 488 servidores, de um total de 1.980 ativos, investidos em FC-03 ou superiores, que poderiam vir a perceber essa indenização, mas sem contemplar a totalidade dos ativos, efetivos ou comissionados, e aposentados e pensionistas, comprometendo a paridade.
A proposta orçamentária do Senado para 2026 revela um aumento de 8,95% na despesa com pessoal, mas as autorizações previstas no Anexo V do PLOA apenas contemplam despesas com provimentos de cargos. Com esse acréscimo percentual seria possível, sem qualquer dificuldade, conceder o mesmo reajuste de 8% a partir de julho de 2026, previsto para o Poder Judiciário, com impacto de cerca de R$ 204 milhões; ou um reajuste de 8% a partir de fevereiro, com impacto de cerca de R$ 360 milhões.
Em 2026, o teto de despesas do Senado fixado nos termos da Lei Complementar nº 200, de 2023, é de R$ 6,649 bilhões, ou R$ 491,6 milhões a mais do que em 2025. Se 77% desse montante – que corresponde à parcela das despesas com pessoal do Senado em 2025, frente ao seu orçamento total – fossem destinados ao reajuste, pelo menos R$ 377 milhões poderiam ser empregados para um reajuste com efeitos gerais, garantindo igualdade de tratamento a ativos, aposentados, pensionistas, titulares de cargos em comissão e, inclusive, os Senadores.
Contudo, “atalhos” como o da criação de “parcelas indenizatórias” têm sido usados como forma de burla ao teto de remuneração constitucional, dado que seu valor se acha achatado. E eles servem, também, para burlar a garantia constitucional da paridade. A consequência é um cenário fragmentado e desigual, em que servidores ativos têm acesso a vantagens que não são extensivas aos inativos.
O pacto constitucional que garante a paridade para os aposentados que ingressaram até a vigência da EC 103/2019 é desconsiderado, o que pode prejudicar direitos adquiridos e a expectativa de direito dos servidores do Senado e da administração pública em geral. O artigo 40 da Constituição e suas regras de transição reforçam a importância da paridade, que deve ser respeitada para assegurar equilíbrio e justiça ao sistema de remuneração.
Porém, críticas à proliferação das chamadas “parcelas indenizatórias” ganham força, na mídia e na sociedade, apontando que, além de vulnerar o teto, essas práticas podem comprometer os princípios da legalidade, moralidade administrativa e transparência, além de gerar desequilíbrios remuneratórios.
A política de valorização do servidor deve, portanto, lastrear-se em critérios legítimos, respeitando a lei e buscando a equidade entre servidores de diferentes gerações e poderes.
Em um momento em que o orçamento público enfrenta restrições e demandas sociais crescentes, encontrar soluções justas e sustentáveis para a remuneração dos servidores é indispensável para a eficiência e legitimidade do serviço público.
É urgente a necessidade de debate aberto e transparente entre os Três Poderes para corrigir distorções, assegurar direitos e preservar o Estado de Direito, e cabe-nos alertar para os perigos das decisões equivocadas e para a necessidade constante da vigilância cidadã e institucional. A valorização do serviço público está intrinsecamente ligada à garantia de justiça e equilíbrio no tratamento salarial dos seus membros, ativos e inativos.
Luiz Alberto dos Santos
Consultor Legislativo – aposentado – do Senado Federal/Administração Pública
Advogado, Mestre em Administração e Doutor em Ciências Sociais
Professor Colaborador da EBAPE/FGV
Ex-Subchefe de Análise e Acompanhamento de Políticas Governamentais da Casa Civil/PR (2003-2014).
Petronio Portella Nunes Filho
Consultor Legislativo – aposentado – do Senado Federal, formado em Ciências Econômicas pela Universidade de Brasília (UnB), com Mestrado na mesma área pela University of Minnesota e Doutorado pela Universidade de Campinas (Unicamp).
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