Por Fábio Gondim*
Consultor legislativo do Senado Federal

“Um dos gargalos em qualquer gestão, pública ou privada, é a qualidade do gestor propriamente dito. No Brasil não são raros os casos em que os agentes públicos que ocupam os cargos gerenciais mais altos não têm a menor condição de fazê-lo”. (Fábio Gondim)

 

 

Chico Buarque na sua música “Geni e o Zepelim” conta a história de Geni, uma mulher que não era tratada com respeito pelas pessoas, mesmo tendo salvado a própria vida delas. “Joga pedra na Geni, ela é feita pra apanhar, ela boa de cuspir” diz o refrão. Atualmente, os servidores públicos estão, hoje, na situação de Geni do Estado brasileiro.

Se, na música, o motivo que leva a população a odiar Geni é sua libertinagem, na vida real, os servidores são criticados pela imoralidade do que se convencionou chamar de privilégios. Rendimentos muito acima do teto, dois meses de férias, e serviços ruins prestados ao cidadão, que destina parcela expressiva dos impostos ao pagamento de salários de servidores públicos.

Em apertada síntese, esses foram os argumentos apresentados pelo governo e grande parte da mídia para justificar a necessidade urgente de uma reforma administrativa, entregue, ontem, ao Congresso Nacional. A reforma, esperava-se, deveria garantir bons serviços públicos para a população e acabar com esses privilégios. Após uma breve análise (a proposta chegou ontem), o que se pode constatar é uma grande dissociação entre os motivos alegados para a urgência da reforma e as soluções que ela apresenta, como procuraremos deixar demonstrado a seguir.

Já de início percebe-se que estão fora do alcance da PEC 32/2020 os magistrados e procuradores. Ocorre que os exemplos fartamente utilizados para demonstrar salários bem acima do teto e, com isso, caracterizar o privilégio dos servidores públicos eram, justamente, essas carreiras. Ademais, as críticas relativas a dois meses de férias, do mesmo modo, se aplicam, se aplicam a elas. Mantê-las fora da proposta, portanto, significa apontar um problema, mas apresentar solução que não o elimina.

Os militares e parlamentares também estão fora da reforma por motivos diferentes. Nesse caso, trata-se da aplicação do adágio: “quem parte e reparte e não fica com a melhor parte, ou é bobo, ou não entende da arte”. Os primeiros estão no poder, os segundos, são detentores do poder. Na reforma previdenciária já ficou claro que não estão dispostos a dar sua parcela de contribuição e já se excluíram dos seus efeitos. Ao contrário de todos os outros brasileiros, não sofreram uma só consequência ruim com a reforma. Os militares, ao contrário, ainda tiveram revisão dos seus soldos.

Constata-se, portanto, que não adianta procurar em seus artigos, parágrafos, incisos e alíneas muitos dispositivos objetivando o fim de privilégios, porque esse não foi o objetivo perseguido pela equipe econômica com a apresentação da PEC 32/2020. Com sua eventual aprovação, supersalários bem acima do teto, em especial no Judiciário, continuarão acontecendo, carreiras com dois meses de férias que vendem um desses meses também, auxílios e outras parcelas que, mais uma vez, furam o teto, não foram proibidos.

Ademais, a reforma nem deveria ser chamada de reforma administrativa. Quase que apenas questões relativas a pessoal foram tratadas e, todas elas, sem correlação com resultados que possam ser percebidos, mais adiante, pela população, o que, afinal de contas, seria o objetivo final de todo o processo.

De fato, a respeito da qualidade do serviço público, ela passa por mais instâncias da gestão do que apenas pelo servidor. Para que um indicador ou uma meta de resultados sejam melhorados, é preciso um comprometimento entre Chefe do Executivo e seus auxiliares. As ações orçamentárias devem refletir claramente esses objetivos e recursos suficientes (orçamentários, humanos, tecnológicos, etc.) devem ser disponibilizados. Só assim o Estado melhora sua atuação e o cidadão sente, na ponta, esse aprimoramento na gestão. Esse passo importantíssimo, que é, justamente, a avaliação dos governos, foi esquecido na reforma administrativa apresentada.

Como se pode fazer uma reforma administrativa, com objetivo de melhorar a qualidade dos serviços públicos prestados, sem estabelecer elementos de planejamento estatal e avaliação do governo? O primeiro a se submeter a indicadores, metas e avaliações, é o gestor para, aí sim, ter condições de estabelecer o mesmo para os servidores. Se não for assim, ele simplesmente nem saberá o que fixar como parâmetros para os servidores e o fará apenas protocolarmente, para cumprir a lei, sem consequências práticas para a população.

Ademais, um dos gargalos em qualquer gestão, pública ou privada, é a qualidade do gestor propriamente dito. No Brasil não são raros os casos em que os agentes públicos que ocupam os cargos gerenciais mais altos não têm a menor condição de fazê-lo. É fundamental que se estabeleçam critérios impessoais de escolaridade, experiência profissional, probidade e outros que se julgar pertinentes para a ocupação de cada um dos cargos e funções comissionadas das três esperas da federação. Assim, um partido político pode até indicar, por exemplo, o presidente de uma autarquia, mas desde que ele preencha os requisitos que a lei estabelece. Essa exigência, aliada à necessidade da consecução de metas de resultados seria capaz de mudar a realidade da gestão pública no que diz respeito à melhora dos serviços públicos percebidos pela população.

Infelizmente, nem essa, nem outra solução correlata foi incorporada no projeto em análise. Mais uma vez, constata-se que outra grande expectativa da população em relação à reforma administrativa está sendo colocada de lado. Se aprovada como apresentada, não haverá ganho significativo algum na qualidade dos serviços prestados ao cidadão. Desperdiça-se um patrimônio político imenso para aprovar uma reforma que não atende às necessidades do país.

A moralidade tão almejada também não foi alcançada na proposta apresentada. A nomeação de servidores para todo tipo de finalidade, menos a consecução de resultados de políticas públicas, continua sendo possível e não foi, por meio da reforma, minimamente coibida. De fato, os cargos de livre provimento, que são aqueles em que agentes políticos nomeiam quem bem entendem não sofreram qualquer tipo de limitação, como vimos, nem de qualificação, com critérios impessoais de escolaridade, experiência, probidade, etc, nem deles foi cobrado qualquer tipo de resultado e, pior ainda, permanecem, a partir da reforma proposta, sem nenhum tipo de limitador quantitativo. A Câmara dos Deputados, por exemplo, que procura passar um ar de responsabilidade para a sociedade, tem 10 mil comissionados para 2,7 mil efetivos e não mexeu com um único desses cargos em sua reforma administrativa própria. A reforma administrativa apresentada pelo governo federal, tampouco propôs quaisquer tipos de racionalização na ocupação desses cargos.

Pelo exposto, pode-se esperar que nomeações abundantes de servidores com destinação diversa da de promover o bem-estar do cidadão por meio da prestação de serviços públicos de qualidade vão continuar na mesmíssima proporção em que hoje ocorrem, de maneira que, mais uma vez, a proposta de reforma administrativa deixa de abordar, enfrentar e solucionar mais um problema grave, cuja solução é demandada por toda população do nosso país.

Além disso, uma das questões mais emergenciais relativas a servidores não efetivos, mais uma vez, não foi abordada. Eles não têm nenhum tipo de garantia. Podem passar décadas trabalhando para o Estado, se especializando e, um dia, são demitidos sem direito a nada! Não têm aviso prévio, seguro-desemprego, ou qualquer outro tipo de direito trabalhista que amenize os efeitos de uma demissão sobre si ou sua família. Entendemos que a reforma administrativa deve, por um lado, moralizar a contratação de servidores comissionados, mas por outro lado, identificada a necessidade, que se dê tratamento digno aos profissionais, criando direitos mínimos para essas carreiras.

Abordados aspectos importantes, fundamentais, dos quais a reforma não trata, vamos, afinal, analisar sobre o que a PEC 32/2020 dispõe.

A reforma proposta trata de incorporar alguns princípios para a administração pública, como imparcialidade, transparência, inovação, responsabilidade, unidade, coordenação e boa governança. Em compensação, na prática, fragiliza os princípios da impessoalidade e moralidade na medida em que relativiza o conceito de estabilidade e sujeita o Estado à vontade de uns poucos agentes públicos.

Importante observar que a estabilidade do servidor público não é um instituto criado para proteger o servidor, mas o serviço público. Um servidor responsável por uma área de licitação que tenha que decidir entre manter o emprego e a mensalidade da escola dos filhos ou denunciar um termo de referência viciado em benefício da coletividade, se não tiver estabilidade, fica mais vulnerável à tentação de fechar os olhos de deixar o processo licitatório viciado ir adiante. Foi, exatamente para evitar esse tipo de pressão que a estabilidade foi criada.

Além do que, a reforma em tela permite a redução de jornada de trabalho com a consequente redução de salários, mas impede que os servidores das carreiras típicas exerçam qualquer outra atividade remunerada. Aumentou-se, há pouquíssimo tempo, a permanência do servidor por meio da reforma da previdência, e agora, se reduz a remuneração e a jornada. Como argumento para justificar a redução de salário, se falava na possibilidade de que o servidor pudesse complementar a renda na iniciativa privada. Argumento falacioso, que não corresponde à realidade, vez que não há trabalhos disponíveis para quando o Estado resolver reduzir jornadas sem aviso prévio. De toda sorte, agora essa possibilidade está definitivamente descartada com a impossibilidade de realização de qualquer outra atividade remunerada. As possibilidades do servidor público vão se afunilando de tal maneira que ele não pode se aposentar, não pode ter um bom salário, não pode buscar alternativa na iniciativa privada, não pode nada!

Estabelece, ainda, a PEC 32/2020, uma etapa a mais nos concursos, na qual apenas os que se saírem melhor depois de um ou dois anos de trabalho serão mantidos. Imagine um cidadão, empregado em uma empresa privada, que pede demissão para ir trabalhar em um órgão público, e, depois de dois anos, não é selecionado. Isso acontece na iniciativa privada, mas no poder público não há garantias, como aviso prévio, FGTS ou seguro-desemprego. Esse cidadão ficaria sem o emprego anterior, sem o emprego público e sem nenhum tipo de direito trabalhista. Esse não é o papel que se espera do Estado para com seus cidadãos.

Além disso, a PEC em tela incluiu a possibilidade de contratação de pessoal por tempo determinado, mediante processo seletivo simplificado. Esse tipo de contratação poderia representar um passo importante se e somente se fosse acompanhado do necessário avanço no planejamento e na fixação das metas de resultados para os governos, conforme já dito anteriormente. Importante a apresentação de uma emenda nesse sentido ou, então, não passará de mais um tipo de contratação de pessoas que entrará na gestão sem tarefa clara, sem meta a alcançar e inchará a máquina pública. Dizer que a lei disporá sobre o assunto mais adiante, como, de fato, está dito, também não elucida a questão. A lei disporá sobre a própria contratação, mas não sobre a fixação de resultados para a gestão, que é pré-requisito para o sucesso desta.

A reforma também abre espaço para instrumentos de cooperação entre órgãos e entidades públicos e privados para a execução de serviços públicos. Trata-se da velha argumentação de que tudo que é público é ruim e lento e tudo que é privado é bom e ágil. Nós não podemos concordar com essa premissa e lembramos que, neste governo mesmo, tivemos diversos auxiliares provenientes da iniciativa privada que entraram e saíram sem conseguir apresentar resultados, o que demonstra que o poder público tem regras próprias e exige experiências e conhecimentos específicos. Simplesmente delegar a entidades de direito privado o exercício de funções públicas foi o que colocou diversos governadores na cadeia no passado mais recente e é algo que merece muita reflexão.

Outros aspectos serão tratados em lei complementar, que disporá sobre normas gerais de gestão de pessoas, política remuneratória e de benefícios, ocupação de cargos de liderança e assessoramento etc. Pode ser que essa lei complementar traga os critérios impessoais para ocupação de cargos e funções comissionadas, cuja falta foi alertada anteriormente. Fica aqui a manifestação de absoluta incompreensão sobre os motivos que levaram o governo a, depois de quase dois anos no comando do país, a não encaminharem uma proposta minimamente completa, com os projetos de lei necessários todos anexos para que se pudesse, ao menos, saber sobre o que se está pensando. A própria reforma apresentada na forma de emenda constitucional, como já foi dito, é absolutamente incompleta no sentido de que abarca somente temas relativos a pessoal e, ainda assim, de forma bastante limitada. Aspectos relativos a planejamento, gestão, orçamento, centro de custos, etc., foram todos esquecidos pela reforma administrativa.

Desmoralizado e criticado, o servidor público, a “Geni do Estado”, foi chamado para servir o Zepelim gigante da pandemia. A população ficou em casa e pediu que servidores fossem aos hospitais, garantissem a segurança nas ruas, estudassem alternativas econômicas, buscassem uma forma de garantir ao máximo a normalidade da vida das pessoas. “Vai com ele, vai Geni, você pode nos salvar, você vai nos redimir”, imploravam, com medo. Muitos servidores adoeceram, morreram. Alguns ainda estão se tratando das sequelas da doença sem nenhum amparo do Estado e já amargam uma proposta desrespeitosa de reforma administrativa, que, travestida de solucionar problemas reais, impõe uma agenda ideológica e ressentida. “Joga bosta na Geni, ela é feita pra apanhar, ela é boa de cuspir” gritam, agora, já sem medo do Zepelim.

Os servidores públicos defendem uma reforma administrativa. Não qualquer uma, mas a que acabe com privilégios que destoam do razoável, que devolvam a capacidade gerencial do Estado e melhorem a prestação de serviços para a população. Não se trata de vantagens ou desvantagens para si, mas do que é melhor para o serviço público, sem corporativismo, com foco no cidadão.

É preciso mais do que voluntarismo. É preciso mais do que vontade e palavras de efeito. Para tratar a coisa pública, é preciso conhecê-la a fundo, ter experiência e saber o caminho a seguir. Diferente disso, seria desperdiçar o imenso capital político necessário para a tramitação de reformas tão importantes fazendo aprovar projetos que não produzem, nem de longe, os efeitos necessários e esperados pelos cidadãos de nosso País.

*Fábio Gondim – Ex-Secretário de Planejamento, Fazenda, Administração, Previdência, Casa Civil e Saúde. Ex-Consultor-Geral de Planejamento, Orçamento, Fiscalização e Controle do Senado Federal. Consultor Legislativo do Senado Federal.

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