Na segunda parte de artigo conjunto publicado no Consultor Jurídico – CONJUR, os Consultores Legislativo do Senado Federal, Marcus Peixoto e Paulo Viegas, e a professora titular da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, advogada e coordenadora do Observatório para Qualidade da Lei e do LegisLab, Fabiana Soares, detalharam a Lei nº 14.948/2024, que institui o marco legal do hidrogênio de baixa emissão de carbono.
Elaboração da Política Nacional do Hidrogênio de Baixa Emissão de Carbono (parte 2)
No Diário Oficial da União, em edição extra de 2/8/2024 — nº 148-A (p. 1, col. 2) foi publicada a Lei nº 14.948/2024, – que compreende o Marco Regulatório do Hidrogênio Verde. Foram criados o Regime Especial de Incentivos para a Produção de Hidrogênio de Baixa Emissão de Carbono (Rehidro); a Política Nacional do Hidrogênio de Baixa Emissão de Carbono, como parte da Política Energética Nacional disposta na Lei nº 9.478, de 6 de agosto de 1997; e os incentivos para a indústria do hidrogênio de baixa emissão de carbono.
A lei dispõe sobre cinco princípios e 20 objetivos da política supracitada, além de 20 conceitos e definições que oferecem parâmetros para o tratamento jurídico da disciplina. Essas disposições tiveram origem no Projeto de Lei nº 2.308/2023 (Emenda-CD), que previa dois programas entre os instrumentos de implementação da Política: o Programa Nacional do Hidrogênio (PNH2); e o Programa de Desenvolvimento do Hidrogênio de Baixa Emissão de Carbono (PHBC).
Ocorre que o primeiro corresponde a um mecanismo de implementação da política supramencionada, enquanto o segundo remete à ideia inicial de criação de um fundo de financiamento das iniciativas previstas nessa política, mas que a acabou recebendo a denominação de programa. O uso dessa palavra para dois significados distintos tornas o texto do projeto confuso, em desrespeito a melhor prática disposta na Lei Complementar nº 85/98 cujo objetivo é dirigir a elaboração de leis.
O resultado decorre da tentativa de convergir interesses sobre a mesma matéria, os quais se salientam em negociações políticas baseadas em distintos pontos de vista — geográficos, econômicos e sociais — que ocorrem num universo multipartidário e um modelo legislativo bicameral. Dessa forma, imperfeições no texto legislativo, ainda que indesejáveis, podem ocorrer, porém seus efeitos práticos podem ensejar dificuldades para os Executivos, as empresas e claro, possíveis questões judiciais.
Considerando que o planejamento legislativo e a avaliação do resultado da lei (objeto da legística) não estão na pauta, esse é um dos riscos que os legislativos correm quando objetivos e efeitos da lei conflitam.
Os artigos 30 a 35 foram vetados e o resultado inviabiliza o PHBC, que asseguraria fontes de recursos financeiros essenciais para a sustentação da política pretendida. Na sua totalidade, os dispositivos vetados dispunham sobre: os objetivos do PHBC; nove diferentes fontes de recursos para financiamento de suas ações; critérios para concessão de valores crescentes de crédito fiscal (a ser concedido para produtores ou compradores de hidrogênio de baixo carbono), que somariam, entre 2028 e 2032, R$ 18,3 bilhões; e a possibilidade da subvenção econômica na comercialização de hidrogênio de baixa emissão de carbono e seus derivados.
O Poder Executivo, na Mensagem nº 741, de 2 de agosto de 2024, defendeu que tais “dispositivos contrariam o interesse público ao instituir incentivos que violam conceitos instituídos na legislação financeira e orçamentária e geram imprecisões que conferem insegurança jurídica para implementação da estratégia de ampliação da oferta e produção do hidrogênio de baixo carbono”.
Metodologia legística
A parte final da mensagem traz um dos problemas que poderiam ser tratados pela metodologia da legística. O que vemos é a governança do setor prejudicada na sua perspectiva de longo prazo. Foram eliminadas as fontes de recursos do artigo 31 e as disposições quanto a concessão de crédito fiscal para o desenvolvimento da cadeia produtiva em apreço dispostas no artigo 32 do PL.
Quanto ao PNH2, ele foi mantido, mas ainda terá suas competências, diretrizes e atribuições instituídas, em boa medida, mediante regulamento e diretrizes do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) o que confere algum grau de incerteza que poderia ser superado por disposições legais.
A Lei institui ainda um Comitê Gestor do Programa Nacional do Hidrogênio (Coges-PNH2), ao qual é atribuída a competência de estabelecer as diretrizes para execução da PHBC, observado o que for estabelecido pelo CNPE. O Coges-PNH2 será integrado por até 15 representantes de órgãos do Poder Executivo, na forma de regulamento, além de: I – 1 representante dos Estados e do Distrito Federal; II – 1 representante da comunidade científica; e III – 3 representantes do setor produtivo. Portanto, decreto presidencial disporá sobre a composição de 11 outros integrantes do Comitê, e sobre a forma de escolha dos representantes do Coges-PNH2 que não integram o Poder Executivo federal.
A autorização para a produção do hidrogênio, carregamento, processamento, tratamento, importação, exportação, armazenagem, estocagem, acondicionamento, transporte, transferência, revenda à comercialização de hidrogênio, seus derivados e carreadores, caberá à ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis), respeitadas as atribuições das demais agências reguladoras conforme as fontes utilizadas no processo de produção.
Essa disposição, por um lado, pode ser eficiente no que tange à aplicação do hidrogênio de baixo carbono para fins industriais. Contudo, ela encontra-se afastada das necessidades oriundas de cadeias de produção de hidrogênio mais limpas, voltadas à exportação, como são aquelas associadas à geração de energia solar-fotovoltaica e eólica para fins de produção do hidrogênio. Logo, num sentido figurado de comparação, se o propósito do marco legal é incentivar cadeias produtivas mais limpas, e delegar a governança do setor para a agência que lida com interesses da indústria de hidrocarbonetos, é possível inferir sobre o risco pela gestão da granja para a raposa.
A lei institui ainda o Sistema Brasileiro de Certificação do Hidrogênio, o que é importante para fins de conferir o atesto de qualidade ao hidrogênio produzido e permitir que se acesse mercados que exijam menor pegada de carbono em seu processo produtivo, como ocorre com o mercado da União Europeia, que se apresenta como maior interessado e demandante por hidrogênio verde, de baixa pegada de carbono.
A Lei publicada faz 24 referências à necessidade de regulamento de diversos dispositivos. Por um lado, essa situação ode conferir mais agilidade aos processos inerentes a essa indústria. Por outro, gera alguma incerteza para os agentes econômico que dela participam. Não obstante, a opção de conferir maior flexibilidade normativa pode fazer sentido em pelo menos parte da indústria do hidrogênio, diz-se, naquela em que as inovações estejam mais presentes.
Leis para desenvolvimento, atuam para futuro, têm uma dimensão intergeracional e necessariamente articuladas com outros atos normativos (outras leis & regulações) com objetivos tecnológicos pois são dependentes de inovações e da capacidade institucional de fomentá-las. Para isso, o sistema de governança legislativo-regulatória que deve definir pautas e temas necessita também de um aparato procedimental mais inovador e capaz de conciliar duas perspectivas: a permanência que assegura a segurança jurídica e a temporalidade que assegura a tomada de decisão no momento adequado, diante do avanço tecnológico.
Dentre os princípios previstos na nova lei, diretores da atividade de densificação normativa [1], ressaltamos alguns que evidenciam a necessária articulação entre a tecnologia fim e a tecnologia meio (inovação no processo de elaboração legislativo-regulatória).
O artigo 2º, por exemplo, fixa a meta/princípio de descarbonização da matriz energética de forma competitiva no mercado brasileiro, seguida do fomento à pesquisa e desenvolvimento do uso do hidrogênio de baixa emissão de carbono. Enquanto isso, nos objetivos da Política Pública, a mitigação dos gases de efeito estufa (GEE), o reconhecimento do tema como interesse nacional. Além disso, há o comprometimento para com o desenvolvimento sustentável nas rotas de produção do hidrogênio que considere os interesses do consumidor quanto ao preço e à qualidade e oferta.
A articulação para com a pesquisa e desenvolvimento é outro imperativo legal a assegurar as condicionantes para ações normativas e ações governamentais concertadas com a tecnologia e inovações que assegurem a autonomia científica brasileira.
Na perspectiva da “tecnologia-meio”, a conformidade com a lei se apresenta na garantia de processos de elaboração normativa que tenham uma dimensão de “planejamento” própria da atividade de avaliação que mira os resultados ou efeitos das legislações e regulações, também o artigo 2º impõe a “previsibilidade na formulação de regulamentos e concessão de incentivos. Na prática, isso significa que a atividade de avaliação prévia deve demonstrar e justificar deveres, obrigações, permissões além de sanções premiais que modulem o comportamento dos afetados, na direção escolhida pelo agente regulador.
Assim, os temas e competências a serem mobilizados para a realização das metas e objetivos da PHBC exigem a concertação inicial não apenas internamente ao Ministério das Minas e Energia, mas também ao MDIC, aos ministérios da Agricultura, do Meio Ambiente, da Ciência e Tecnologia, e à Capes, além das agências reguladoras como ANP, Aneel, ANA, ANTT e outros entes com competências normativas a serem identificados no curso da avaliação (que permite um juízo de previsibilidade) dos atos normativos que se seguirem.
O Decreto nº 12.150, também publicado em agosto de 2024, traz os fundamentos da estratégia nacional da melhoria regulatória. Leis para desenvolvimento necessitam de processos céleres aptos a promoverem a maior efetividade de princípios e objetivos legais, além do aprimoramento dos processos regulatórios.
As diretrizes da política para a melhoria regulatória elencam um governo aberto; o uso de evidências na atividade de elaboração normativa; a temporalidade e os recursos modulados pelo nível de impacto futuro; a accountability; o incremento do bem-estar social; o fomento da inovação. Já o protagonismo conferido ao Comitê Gestor do Pro Reg pode indicar o desenvolvimento de ações futuras de concertação entre os atores normativos da administração pública federal, necessária ao marco regulatório de hidrogênio verde. O Executivo federal tem investido tempo e criado procedimentos para regulações mais eficazes e com menor potencial de conflitos judiciais.
O Brasil está sintonizado com a necessidade mundial de enfrentar os impostos pela desafios da transição energética, o hidrogênio é uma das portas a serem abertas. Cabe ao sucesso da concertação entre leis e regulações o objetivo de evitar que uma boa pauta legislativa tenha seus necessários efeitos queimados por curto-circuito.
Um Pro Leg para os legislativos é uma inovação em processo essencial à visão de futuro, típica das leis para desenvolvimento.
Fonte: https://www.conjur.com.br/2024-set-03/elaboracao-da-politica-nacional-do-hidrogenio-de-baixa-emissao-de-carbono-parte-2/