O “Descontrole Fiscal” de Lula

Por Petronio Portella Filho*

O governo Lula cumpriu a meta fiscal de 2024. No ano passado, 2023, a meta fiscal também foi cumprida.

O Brasil está se tornando mais austero? Sem dúvida. O déficit primário diminuiu de 138 bilhões em 2023 (1,3% do PIB) para 10 a 15 bilhões (0,1% do PIB) em 2024. O resultado de 2024 é uma estimativa preliminar. O resultado de 2023 desconsidera o pagamento dos precatórios de Bolsonaro, conforme acordado com o Supremo.

Michel Temer obteve Déficit Primário médio de 2,0% do PIB. Jair Bolsonaro, durante os três primeiros anos, teve Déficit Primário médio de 3,9% do PIB. No seu 4º ano, Bolsonaro, deu um show de irresponsabilidade fiscal. Expandiu gastos de forma ilegal para comprar a reeleição, depois fez pedaladas fiscais nos precatórios, na Previdência, nos benefícios sociais e nos governadores. Obteve Superávit Primário de 54 bilhões fazendo pedaladas de 200 bilhões.

Lula está sendo o mais austero Presidente do Brasil desde o fim da ditadura. Manteve o superávit primário médio de 2,2% do PIB em seus dois primeiros mandatos e deve praticamente zerar o Déficit Primário em 2024. No entanto, a capa da edição desta semana da Veja diz que Galípolo assume o Banco Central tendo que “enfrentar uma das mais agudas crises fiscais do país neste século”.

A revista Veja espalha desinformação para exigir aumento de uma austeridade que já é atípica e excessiva. Todos os jornais de grande circulação adotam a mesma linha editorial. Alardeiam um descontrole fiscal que não existe.

O episódio da capa da Veja mostra que Lula segue sendo perseguido pela mídia apesar de se esforçar em excesso para atender às exigências do lobby da Faria Lima. Está sendo um esforço em vão. Pesquisa Genial/Quaest de 4 de dezembro mostrou que 96% dos “analistas” da Faria Lima discordam da politica econômica de Lula. Pesquisa anterior mostrou que 82% deles votaram em Bolsonaro.

Lula e Haddad tentam inutilmente agradar opositores que perderam a eleição e não aceitaram a derrota. Eles me fazem lembrar a advertência de Churchill: “o apaziguador é alguém que alimenta um crocodilo esperando ser o último a ser devorado”.

Esclareço que sou crítico da austeridade neoliberal exigida pela Faria Lima e pela mídia. Ela sequer merece ser chamada de austeridade. É um conjunto de políticas econômicas que travam o crescimento econômico e, paradoxalmente, pioram as contas públicas. Tal “austeridade” tampouco é socialmente justa, pois corta gastos fiscais que beneficiam quem mais precisa para pagar juros a quem menos precisa.

Para mais detalhes sobre o fracasso macroeconômico e a falsa neutralidade técnica das políticas de austeridade, recomendo “Austeridade, uma Ideia Perigosa”, de Mark Blyth. Publiquei resenha do livro na minha coluna da Alesfe e no Jornal GGN.

*Petronio Portella Filho é Consultor Legislativo do Senado Federal (aposentado)

As opiniões emitidas e informações apresentadas são de exclusiva responsabilidade do/a autor/a e não refletem necessariamente a posição ou opinião da Alesfe

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O Porre de Felicidade

Por Petronio Portella Filho*

No dia 30 de outubro, quando o Botafogo se classificou para a final da Libertadores, comemorei muito. Mas, ao final da noite, senti a volta de dois velhos conhecidos, a ansiedade e o pessimismo:

“Deus do céu. A final da Libertadores vai ser em 30 de novembro, daqui a 31 dias. Como é que eu vou conseguir esperar tanto tempo? E o Botafogo tem contra si o favoritismo. Meu time só vence decisões quando entra como azarão.”

Fui socorrido por outro defeito botafoguense, a superstição. Pensei algo que eu não tinha lido ou ouvido de nenhum jornalista profissional ou torcedor:

“Vem cá, o último título sul-americano do Botafogo foi na Conmebol de 1993. Naquele torneio enfrentamos, na semifinal e final, Atlético-MG e Peñarol. Por incrível coincidência, na Libertadores de 2024, os adversários da semifinal e final são os mesmos de 1993, com ordem invertida.

Papai do Céu aparentemente não gosta do Botafogo. Mas não acredito em coincidências. Desta vez o Todo-Poderoso mandou um sinal de que o Fogão vai ser campeão. Quaisquer que sejam as heresias e sacrilégios que cometemos no passado, fomos perdoados.

Toda superstição é ridícula, assim como todo fanatismo. No meu trabalho de economista, me esforço para ser científico, racional e não aderir à manada de místicos que idolatram o Mercado. Aí vem o Botafogo e estraga tudo. Ele me faz aderir a uma manada de loucos. E sou pior que a média. Outro dia um colega consultor disse que, quando o Botafogo entra na discussão, minha inteligência desaparece. O colega em questão não é flamenguista, é botafoguense. Ou seja, meu caso é grave.

Pois bem, lá estava eu, no 30 de outubro, ansioso por um jogo que iria se realizar no longínquo 30 de novembro. No dia seguinte, iniciei a lenta e dolorosa contagem regressiva. Faltam 30 dias, 29, 28…

Na semana do jogo, levantei da cama com frio na barriga todos os dias. No dia do jogo, estava tão tenso que pensei em tomar uma jarra de café para justificar o estado de superaquecimento em que já me encontrava.

Não tomei nada, não ia me fazer bem. Eu preferia tomar um calmante, mas não tinha nenhum em casa. Fiquei irritado comigo. “Sou um idiota. Tive 31 dias para me preparar e, sendo cardiopata, não pedi calmante a nenhum médico.”

Foi quando me lembrei de um estratagema mental que usava quando era criança e entrava no consultório do dentista. Eu mentalizava a paz que sentiria 1 hora no futuro, quando saísse daquela sala de torturas.

No 30 de novembro, entrei na sala de tv com a seguinte atitude mental. “Às 19 horas, o teste de resistência cardíaca estará terminado. O tempo é meu amigo. Eu consigo suportar a derrota. O que eu não consigo mais suportar é o suspense.”

Completamente pilhado, comecei a assistir ao jogo. Logo vi que eu não era o único pilhado. Aos 30 segundos de jogo, um jogador do Botafogo chutou a cabeça do adversário e foi expulso. Foi a expulsão mais rápida da história da Libertadores. Meu time começou bem, quebrando um recorde.

O Botafogo ia ter que jogar com um a menos contra um adversário que, nos últimos quatro jogos da Libertadores, marcou 5 gols e tomou 1. Jogamos na retranca, o que curiosamente é melhor para o Botafogo. Marcamos dois gols no final do 1º tempo. Pensei que poderia relaxar no 2º tempo. Ledo engano! No 1º minuto tomamos gol de cabeça de um… baixinho, em cobrança de escanteio. Tem coisa que só acontece com o Botafogo.

O Atlético jogou muito no 2º tempo, que foi tão tenso como o 1º. O 3º gol do Botafogo só surgiu no último lance do último minuto da prorrogação. Quebrou-se outro tabu, em vez de tomar gol no último minuto, o Botafogo marcou. Quando terminou o jogo, eu estava eufórico e pensei em beber algo para comemorar.

Aí descobri que eu já estava de porre. Eu tinha tomado um porre de felicidade. Tomo duas únicas drogas estimulantes, o café para me animar e o álcool para relaxar. Naquele dia mágico fiquei excitadíssimo sem cafeína, depois relaxadíssimo sem álcool.

Mais que relaxado, me senti em estado de graça, no paraíso. Por pouco não vivenciei a súbita iluminação de Buda e me transformei num santo.

Iniciei a comemoração do título botando no Spotify o samba enredo de 1989 da União da Ilha, Festa Profana:

“Eu vou tomar um porre de felicidade, Vou sacudir, eu vou zoar toda a cidade.”

*Petronio Portella Filho é Consultor Legislativo do Senado Federal (aposentado)

Crédito da imagem: Mário Alberto (O Globo)

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Trump seria muito pior que Biden?

Por Petronio Portella Filho*

Internamente, sim. Muito pior. Trump vai governar para os poderosos, prejudicar os pobres e tratar aos pontapés os imigrantes latinos otários que votaram nele. Vai cortar gastos sociais para diminuir os impostos. Vai piorar a concentração de renda dos EUA (que já é padrão Terceiro Mundo). Vai tentar destruir a democracia americana, que, segundo o ranking da Economist, já é “Imperfeita” e está na posição 29.

Mas, externamente, Trump não seria tão pior. Ele seria talvez pior que Kamala Harris, mas provavelmente melhor do que o atual presidente. Joe Biden é um defensor fanático da hegemonia americana. Ele vive num mundo unipolar.

Biden apoia e financia o genocídio de Gaza, tentou expandir a OTAN até a Ucrânia, provocou, de forma imprudente, a China, se aliando a Taiwan e espalhando bases militares pelos países vizinhos. Para mim Biden é o Apocalipse Joe. Trump, em seu primeiro mandato, foi muito menos beligerante que Biden.

E que grande diferença Trump faria para o Brasil? Bem, eu tenho uma imagem dele diferente da dos fãs bolsonaristas.

Trump não dá a mínima para bajuladores, especialmente os latino-americanos. É inescrupuloso e autoritário, porém pragmático. Trump é um típico magnata dos negócios. Não levou Bolsonaro a sério nem quando era presidente. Ele vai salvar Jair Bolsonaro da cadeia? Nos sonhos dos bolsominions.

Joe Biden era tão melhor do que Trump aqui na América Latina? O Apocalipse Joe apoiou o golpe da extrema direita no Peru, manteve as sanções que asfixiam Cuba e Venezuela, tentou derrubar Maduro, tentou desestabilizar os governos esquerdistas do México, Colômbia e Nicarágua. Se Biden interferiu menos que Trump-1, a diferença é imperceptível.

Todos os extremistas trumpistas da América Latina foram apoiados sem ressalvas por Biden. O protoditador Milei foi recebido de braços abertos. Aqui no Brasil, a embaixada americana tomou o lado do trumpista Elon Musk quando ele anunciou que ia desrespeitar decisão do Supremo.

Biden foi contra o golpe de Bolsonaro sim, mas por vingança. O Mito o acusou de fraude eleitoral e demorou 29 dias para reconhecer sua vitória. O homem mais poderoso do mundo não podia perdoar tal insubordinação no seu backyard (quintal).

Os dois golpes de Estado que o Brasil sofreu durante minha vida tiveram a cumplicidade de presidentes americanos democratas, Lyndon Johnson em 1964 e Barack Obama em 2016.

*Petronio Portella Filho é Consultor Legislativo do Senado Federal (aposentado)

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40 anos sem papai

Por Petronio Portella Filho*

06/01/2020

Quando vivo, Papai era como um cristal precioso em local vulnerável da casa. Nós sabíamos que um dia ele iria cair e quebrar. Papai era fumante, sedentário, cardíaco e levava vida estressante.

Mesmo assim, ninguém da família estava preparado para perdê-lo tão cedo. Ele se foi, de forma repentina, exatamente 40 anos atrás. Estava no auge da carreira política.

Difícil esquecer o Dia de Reis de 1980. Foi como se meu pior pesadelo saísse de dentro da noite e me engolisse. O mundo, de repente, se revelou indiferente ao meu sofrimento. Nada de doloroso me seria poupado.

Vivi boa parte da vida adulta com a sensação de que algo precioso havia sido roubado de mim. Ele se foi de forma prematura demais, repentina demais. Passaram-se muitos anos antes que eu conseguisse voltar a pensar nele sem sentir dor.

Na noite anterior ao dia do meu casamento, sonhei que meu pai e minha noiva estavam em andares diferentes de uma casa. Eu queria que os dois se encontrassem para apresentar um ao outro. Mas os dois nunca se encontravam. Despertei profundamente frustrado. Eu me casei nove anos após a morte do meu pai — mesmo assim ele permanecia vivo em meus sonhos.

Alguns anos após o casamento me tornei pai. Foi como se parte dele renascesse dentro de mim. Sem perceber e nem planejar, comecei a tentar ser o tipo de pai que ele foi.

Ele foi um pai apaixonado pelos três filhos. Carinhoso sempre, disciplinador raramente. Ele sabia nos educar com leveza. E sempre deixava transparecer a adoração que tinha pelos filhos.

Prefeito de Teresina, Governador do Piauí, Senador, Presidente do Senado, Ministro da Justiça — ele jamais botou um escritório trancado entre ele e os filhos. Talvez por isto, eu nunca tenha conseguido trancar a porta do meu escritório para as filhas, mesmo quando elas estavam numa fase em que entravam e bagunçavam minhas coisas.

Papai foi um referencial de verdade e de integridade. Nunca mentiu para me agradar. Todas as vezes em que me comportei de forma errada, ele diagnosticava meu erro com diplomacia e precisão cirúrgica. Aconselhava sempre, mas não insistia. Não gostou, por exemplo, quando decidi ser economista. Mas me deixou seguir o meu caminho. Papai jamais deu a impressão de que me amaria mais se eu fosse diferente do que eu era.

Quando botei no Facebook a crônica “O Papai Noel Infeliz” muitos não conseguiram entender o meu desconforto em me fantasiar de Papai Noel. Não tenho nada contra um pai se passar por Papai Noel, acho até legal. A questão era que o meu modelo de pai jamais se fantasiaria para enganar os filhos.

Mas não pensem que ele foi um pai casmurro. Ele era espirituoso, carismático, encantador. Tinha o charme nordestino do contador de histórias. Ele sabia entreter, sabia conquistar as pessoas.

Tinha um domínio impressionante da língua portuguesa, tanto na fala quanto na escrita. Era um religioso de foro íntimo, sem proselitismo. Sabia liderar. Lutou pela Democracia nas entranhas da Ditadura. No fim, a paixão pela política abreviou sua vida.

Quando ele se foi, muitos disseram que ele seria o próximo presidente da república. Talvez sim, talvez não. Sinceramente, não precisava tanto.

A mim bastaria que ele tivesse vivido para conhecer os netos. E que Mamãe não ficasse viúva tão nova. E que as vidas das minhas filhas Bibiana e Julia — como a minha — fossem enriquecidas pelo convívio com aquele homem extraordinário.

*Petronio Portella Filho é Consultor Legislativo do Senado Federal (aposentado)

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Austeridade, uma ideia perigosa

Por Petronio Portella Filho*

“Sou a favor de que todos apertem os cintos, desde que todos usem as mesmas calças.” Mark Blyth

Economistas do mercado financeiro projetam, para o Brasil, um déficit primário de 0,7% do PIB em 2024 (último relatório Focus). Segundo a maioria deles, isso seria algo imoral, uma demonstração de “descontrole fiscal”. Curiosamente, na última edição do Monitor Fiscal (abril/2024), o FMI projetou, para os 188 países que ele monitora, um déficit primário médio de 4,9% do PIB em 2024. E o tom da referida publicação não é alarmista. Ou seja, aqui no Brasil, exige-se mais austeridade fiscal do que no exterior. Tentam impor ao governo Lula uma agenda de austeridade que o impediria de cumprir o programa eleitoral com que ganhou a eleição.

Tal campanha torna urgente a leitura de “Austeridade, a História de uma Ideia Perigosa”, de Mark Blyth. Trata-se do melhor e mais completo livro que já foi escrito sobre a doutrina da austeridade econômica. Com esse livro, Blyth se tornou o crítico mais respeitado das políticas de austeridade. Uma excelente tradução do livro foi publicada no Brasil pela editora Autonomia Literária. O livro é excelente fonte bibliográfica, além de uma leitura agradável.

Vou iniciar a resenha do livro com uma indagação. Como pode alguém em sã consciência ser contra a austeridade? Segundo os dicionários, todas as acepções do vocábulo austeridade são positivas. Austeridade significa autocontrole, comedimento, frugalidade, despojamento e sobriedade. Não é por acaso que todos os defensores das políticas de austeridade a defendam com base em princípios morais.

A questão é complexa. Começa que a “austeridade” inventada pelos economistas tem pouco a ver com as virtudes listados pelos dicionários. Segundo os doutrinadores, a austeridade é necessária porque os governos – todos eles diagnosticados como inchados – precisam cortar despesas fiscais, única maneira de equilibrar as contas públicas. A “farra de gastos” que provocou aumentos no endividamento público deveria dar lugar a uma disciplina fiscal “moralizadora”, onde os governos só gastam o que arrecadam. A austeridade promoveria uma forma de deflação, ou seja, de redução dos preços. A economia se ajustaria via redução dos salários e preços, recuperando sua “competitividade” internacional. Tal política restauraria a confiança dos empresários, que voltariam a investir.

Segundo Blyth, a doutrina é problemática em vários níveis, a começar pelo diagnóstico do problema. O aumento do endividamento público das últimas décadas não foi resultado da expansão de gastos fiscais”, muito menos do crescimento do Estado. Pelo contrário. O recente aumento do endividamento público, um fenômeno internacional, se deu numa época de ampla hegemonia do neoliberalismo. Tudo começou com uma crise bancária propiciada por uma das bandeiras mais caras do neoliberalismo, a desregulação do sistema financeiro.

A crise do subprime (2007-08) foi protagonizada pelo setor financeiro privado dos EUA, que se engajou em atividades especulativas e fraudulentas sem a supervisão das autoridades. Algo similar aconteceu com grandes bancos de vários países. A solução americana foi usar o banco central para comprar ativos financeiros tóxicos do setor privado. Os balanços bancários do sistema financeiro privado foram saneados em troca da deterioração dos balanços do setor público. Nos Estados Unidos, a operação de resgate dos bancos pelo Federal Reserve foi apelidada de “Cash for Trash” (compra de lixo com dinheiro vivo).

Na prática, a dívida bancária foi socializada nos EUA e na maior parte dos países. A austeridade, argumenta Mark Blyth, é a contrapartida da operação de resgate dos bancos. Ela é também a forma como os bancos exigem que a dívida federal que eles transferiram para o Estado seja paga pelos contribuintes. Nas palavras de Blyth: “Austeridade não é apenas o preço da salvação dos bancos. Ela é o preço que os bancos querem que nós paguemos”.

O autor observa que, antes da crise de 2008, praticamente ninguém nos Estados Unidos ou no exterior estava preocupado com “o aumento descontrolado das dívidas públicas” nem com “o excesso de gastos fiscais”. Quando a crise financeira se instalou, em 2008, a resposta inicial dos governos foi keynesiana. Os gastos fiscais foram expandidos, o que impediu a repetição da Grande Depressão de 1930. Mas, a partir da reunião do G-20 de junho de 2010, o keynesianismo deu lugar a uma estratégia denominada “growth friendly fiscal consolidation”, um eufemismo para a velha austeridade fiscal.

As restrições de Mark Blyth às políticas de austeridade podem ser resumidas em dois argumentos. Em primeiro lugar, os sacrifícios que ela impõe não são dirigidos aos responsáveis pela criação dos ativos tóxicos que originaram a crise. A austeridade sacrifica trabalhadores, classe média e empresários do setor produtivo – mas não toca nos privilégios dos bancos e rentistas.

Em segundo lugar, a austeridade NÃO FUNCIONA − se o significado da palavra “funcionar” for “promover crescimento econômico e reduzir dívidas públicas”. Pelo contrário. Blyth cita dados a perder de vista provando que a austeridade não só provoca estagnação econômica e aumento do desemprego, como também piora a situação dos devedores públicos e privados.

As dívidas de um governo são muito diferentes das dívidas de um indivíduo. A dívida de uma pessoa pode ser paga, inclusive na íntegra, se ela apertar o cinto. As dívidas do governo federal são quase sempre roladas. Tais dívidas só diminuem no longo prazo quando a taxa de crescimento do PIB é maior do que a taxa de juros real que incide sobre a dívida. A austeridade não funciona porque ela diminui a taxa de crescimento do PIB (e da Receita Fiscal), mantendo constante (ou aumentando) a taxa de juros.

As estatísticas são eloquentes. Das políticas de austeridade fiscal resultou não só aumento nas dívidas públicas como também aumento nas taxas de juros que os bancos cobram para financiá-las. Ou seja, os próprios credores privados desconfiam da austeridade. O mesmo pode ser dito das bolsas de valores. Quando os governos anunciam grandes cortes de gastos fiscais, isso quase sempre provoca quedas das bolsas, ao invés do prometido retorno da confiança do setor privado.

No Brasil, logo após o impeachment da Dilma, botaram na Constituição o “teto de gastos”, que na verdade era um esmagador de gastos. O “teto” vigorou durante sete anos. Era tão radical que não chegou a ser cumprido, mas impôs uma agenda de redução do Estado, privatizações e cortes de direitos sociais. Os resultados foram desastrosos tanto para o crescimento quanto para o endividamento público. A Dívida Líquida do Governo Central e BC, durante as gestões petistas, havia diminuído de 37,7% do PIB (dez/2002) para 26,0% do PIB (abril/2016). Mas ela sofreu grande aumento durante as gestões “austeras” de Temer e Bolsonaro, quando saltou de 26,0% (abril/2016) para 47,1% (dez/2022).

Mark Blyth analisa as políticas de austeridade não só na prática, como também na teoria. Ele pesquisou as origens intelectuais e históricas da doutrina, começando com os autores clássicos e indo até a impostura da “austeridade expansiva” dos italianos. O estudo dos italianos, liderados por Alberto Alesina, deu credibilidade à tese esdrúxula de que austeridade fiscal seria uma política antirrecessiva (na contramão de Keynes e da experiência mundial). Tal tese foi aplicada em em vários países, após a crise financeira de 2008. Os resultados não poderiam ser piores: diminuição do crescimento econômico e aumento do desemprego e das dívidas públicas.

O autor mostra que a doutrina da “austeridade expansiva” foi amplamente contestada por vários autores, inclusive por um estudo do Fundo Monetário Internacional. Paul Krugman zomba de tal crença e a compara com um culto à Fada da Confiança. Mas, como observa Blyth, a austeridade é uma doutrina zumbi. Por mais que fracasse, ela se recusa a morrer em definitivo. Volta e meia ela sai da catacumba.

Mark Blythe é muito crítico da União Europeia, que considera uma armadilha monetária e fiscal. A UE, ao tentar impor o modelo austero alemão para o continente europeu, ainda por cima com moeda única, produziu décadas de estagnação e uma gigantesca crise bancária. A diferença entre a crise bancária americana e a europeia é o tamanho do problema. Nos EUA os bancos são grandes demais para falir; na Europa, grandes demais para o governo resgatar.

A solução, segundo Blyth, seria os governos desistirem de salvar grandes bancos inadimplentes. Tais operações de resgate provocam saltos na dívida pública, que servem de pretexto para a “austeridade” perpétua. As elites aumentam a dívida e o povo paga por ela. A austeridade produz estagnação e a relação dívida/PIB não diminui no longo prazo. Melhor do que o banco central salvar bancos comprando títulos podres seria permitir falências e liquidações extrajudiciais, de forma organizada, impondo os sacrifícios da austeridade a banqueiros e especuladores. Quando isso acontecer – se isso um dia acontecer − poderemos então defender a austeridade macroeconômica com base em princípios morais.

*Petronio Portella Filho é Consultor Legislativo do Senado Federal (aposentado)

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