Artigo produzido pelo consultor legislativo do Senado Federal e presidente da Alesfe, Marcus Peixoto, e pela coordenadora do Observatório para Qualidade da Lei da UFMG, Profa. Fabiana de Menezes Soares.

Processos decisórios necessitam de diversas camadas de análise, sobretudo diante da complexidade da reconstrução do cenário presente, objeto da ação legislativo-regulatória. O tempo e o lugar dos problemas a serem enfrentados (e desenhados) sofistica a interpretação de fatos e interações sociais.

Conforme já salientamos em outro momento, esses dados tem um singular valor no nosso país continental, onde os textos legais várias vezes entram em choque com os contextos “como eles são”.

Nos últimos três anos, o governo federal e o Congresso Nacional têm adotado iniciativas para melhoria do ambiente regulatório e uma das ações diz respeito às avaliações de impacto. Esse movimento foi expresso dispositivos das Leis nº 13.848 e nº 13.874, ambas de 2019, além da regulamentação para elaboração de atos normativos, contida nos Decretos nº 9.191/2017 e 10.411/2020.

Avaliações de impacto necessitam de dados idôneos e aptos a reconstruírem não somente o cenário de incidência do novo ato normativo, mas que assegurem a reconstrução do cenário factual presente, da forma mais completa possível.

Somente diante dessas duas dimensões será possível a elaboração confiável de indicadores que permitam uma harmonização entre legislações e políticas públicas, entre as leis dos livros e a sua predestinada ação governamental: novos atos normativos precisam aprender com a ineficácia e ineficiência dos atos passados.

Todo problema de ordem legislativo-regulatória encontra-se datado e localizado. Todavia, no momento em que se discute a modelagem adequada ao direito brasileiro, se queremos bem projetar para o futuro, bem distantes de uma vanguarda do atraso, a questão estatístico-geográfica assume importância estratégica.

A governança legislativo-regulatória inova na medida em que incorpora tecnologias capazes de propiciar uma visão sistêmica da realidade por meio de um conjunto de dados oriundos de diversas fontes e lugares. O novo Marco Regulatório de Ciência, Tecnologia e Inovação, Lei nº 13.243 de 2016 foi elaborado para garantir a autonomia científico-tecnológica do Brasil, que necessita incorporá-la no seu sistema de dados geográfico-estatísticos e assim melhorar a sua estrutura de gestão do conhecimento.

As consequências da pandemia da Covid-19 bem ilustram a necessidade tanto da garantia de livre acesso a uma rede idônea dados geográfico-estatísticos quanto da sua interface com os diversos bancos e registros administrativos existentes em diversas esferas dos três níveis da federação.

Esse tipo de concertação entre administrações públicas pode significar a extração de informações com menor custo, maior cooperação entre entes federativos e melhoria nos insumos informacionais nos processos decisórios levados a cabo não só pelo Executivo, mas pelo Legislativo e Judiciário, que necessitam inovar nos seus modelos de gestão de dados, bem como pelo setor privado.

A Lei de Acesso à Informação tem como escopo a garantia de acesso à informação do Estado pela sociedade. Seus destinatários também incluem as estruturas administrativas entre as diversas gestões, de todos os níveis e em todas as funções. E é essa concertação que permitirá uma otimização da prestação do serviço público, foco do Código de Defesa do Usuário do Serviço Público, instituído pela Lei nº 13.460, de 2017.

Por exemplo, até agosto de 2020, segundo o Portal da Transparência do Governo Federal já haviam sido gastos R$ 182,3 bilhões com o auxílio emergencial, instituído pela Lei nº 13.982, de 2020, concedido a 67,14 milhões de beneficiários.

Dados de diversos cadastros do Governo tiveram de ser cruzados (CadÚnico, CAGED), para enquadrar os beneficiários do auxílio, mas diversos problemas envolvendo a coleta e o processamento dos dados facilitaram golpes e fraudes. O Tribunal de Contas da União (TCU) avaliou que 10% dos beneficiários da primeira parcela (ou cerca de 5,8 milhões de requisitantes) receberam o auxílio indevidamente.

Pelo menos 4,8 milhões de pessoas receberam indevidamente o auxílio emergencial descumprindo a regra de dois membros por família, e até o mês de junho, 1,31 milhão de benefícios foram cancelados por estarem em desacordo com as regras de elegibilidade (2% do total de elegíveis), indicando pagamentos indevidos de R$ 1,46 bilhão.

O TCU analisou ainda a qualidade das informações do Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) da Secretaria da Receita Federal e concluiu que a credibilidade da base de dados é boa, mas ainda há inconsistências nos registros devido à falta de integração e o limitado compartilhamento do CPF com outras bases públicas.

Todos os cidadãos e empresas têm cadastros (CPF ou CNPJ) na Secretaria da Receita Federal. Mas os cidadãos também podem (ou devem) possuir ou documentos de identidade civil, carteira nacional de habilitação (CNH), título de eleitor, registro profissional (nos 68 conselhos respectivos), carteira de trabalho, registro na Previdência, registro estudantil, registro militar, passaporte.

Cada um desses registros cobre determinado percentual da população. A expectativa, no entanto, é de unificação de todos os registros a partir da publicação da Lei nº 13.444, de 2017, que dispõe sobre a Identificação Civil Nacional (ICN), com o objetivo de identificar o brasileiro em suas relações com a sociedade e com os órgãos e entidades governamentais e privados.

Além de criar um Comitê Gestor da ICN, a Lei citada dá ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a responsabilidade de gestão das informações biométricas e biográficas, já contidas na sua base de dados, e as do Sistema Nacional de Informações de Registro Civil – SIRC. Instituído em 2014, e hoje regulamentado pelo Decreto nº 9.929, de 2019, o SIRC armazena as informações eletronicamente.

A simplificação para a identificação correta e confiável de pessoas e empresas é fundamental para o a coleta, tratamento e divulgação de todos demais dados estatísticos e geográficos oficiais, dos inúmeros registros administrativos, cadastros e sistemas de informação públicos, mas igualmente importante para o setor privado.

É uma condição para a redução das inseguranças jurídicas dos contratos e, portanto, dos custos de transação. A falta de integração de dados[2] também tem impactos negativos sobre a qualidade da fiscalização, o que potencializa os custos nefastos.

O art. 21 da Constituição Federal (CF) de 1988 diz que compete à União “organizar e manter os serviços oficiais de estatística, geografia, geologia e cartografia de âmbito nacional”. E pelo art. 22, XVIII, da CF, compete privativamente à União legislar sobre sistema estatístico, sistema cartográfico e de geologia nacionais.
Um período onde os níveis de informatização dos sistemas eram quase inexistentes, e os padrões internacionais de produção de dados não encontram conformidade com os atuais.

A Lei nº 6.183, de 1974, que dispõe sobre os Sistemas Estatístico e Cartográfico Nacionais, e o Decreto-lei nº 243, de 1967, que fixa as Diretrizes e Bases da Cartografia Brasileira e organiza o Sistema Cartográfico Nacional, foram recepcionados pela atual CF, mas estão distantes dos desafios regulatórios atuais e dos padrões dos sistemas internacionais de estatística e geoinformação.

No século XXI aumentou a demanda por dados estatísticos oficiais que atendam a padrões estabelecidos por organizações internacionais. O Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais da Organização das Nações Unidas (ONU) possui uma Divisão de Estatística (UNSD, na sigla em inglês), cujo objetivo é promover o avanço do sistema estatístico global, desenvolvendo padrões e normas, e apoiando o fortalecimento dos sistemas estatísticos nacionais.

Em 1994 foram aprovados pela ONU, e atualizados em 2014, os dez Princípios Fundamentais das Estatísticas Oficiais, pelos quais estas constituem um elemento indispensável do sistema de informação de uma sociedade democrática e proporcionam ao governo, à economia e ao público dados acerca da situação econômica, demográfica, social e ambiental.

Mais recentemente o Decreto nº 8.777, de 2016, instituiu a Política de Dados Abertos do Poder Executivo federal e a Infraestrutura Nacional de Dados Abertos – INDA que se integram à Estratégia Brasileira para a Transformação Digital, instituída pelo Decreto nº 9.319, de 2018 (que também criou o Sistema Nacional para a Transformação Digital); e à Política Nacional de Governo Aberto, atualizada pelo Decreto nº 10.160, de 2019.

Entretanto, como se vê, tais políticas alcançam apenas o Poder Executivo Federal e não estão estabelecidas no âmbito da legislação ordinária. São políticas de governo, cujo debate não passou pelo Congresso Nacional e, portanto, não são políticas de Estado, que devem alcançar os demais poderes e instâncias federativas.

Presenciamos ainda uma rápida evolução das geotecnologias (sensoriamento remoto, imagens de satélite, georreferenciamento, etc.) e das tecnologias de informação e comunicação (TIC). No Brasil diversos sistemas de informação geográfica (SIG) estatais estão integrados, por meio do sistema de servidores de dados do Diretório Brasileiro de Dados Geoespaciais – DBDG, na Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais – INDE, instituída pelo Decreto nº 6.666 de 2008.

A INDE está abrigada no Portal Brasileiro de Dados Geoespaciais, denominado “Sistema de Informações Geográficas do Brasil – SIG Brasil”. Entretanto, é fundamental prever e organizar esse Sistema no âmbito de uma legislação federal. Praticamente não há mais informação estatística que não seja georreferenciada ou georreferenciável, e essa integração proporciona uma poderosa ferramenta de análise da evolução da realidade socioeconômica e ambiental.

A previsão legal da integração automática e obrigatória dos diversos sistemas de oficiais de informação estatística e geográfica, dos registros administrativos e cadastros, permitirá poupar preciosos recursos públicos na coleta, tratamento, armazenamento e compartilhamento dos dados[3], e facilitar o acesso pela sociedade, resguardados os níveis de sigilo (estatístico, bancário, fiscal, etc.) estabelecidos na legislação federal. Normas complementares, com a estabelecida pela Lei nº 13.709, de 2018, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), garantem a segurança do conjunto de dados oficiais.

Ao mesmo tempo que avançam as demandas e os padrões internacionais de organização de sistemas nacionais voltados para as estatísticas e geoinformação oficiais, aumenta o debate sobre a necessidade de avaliação de impacto regulatório ou legislativo, e do monitoramento e da avaliação de políticas públicas (APP), atividades essenciais para a melhoria da eficiência da atuação do Estado, para a tomada de decisão nos Poderes Legislativo e Executivo, sobre a formulação e aperfeiçoamento das leis, a reformulação das políticas públicas.

Essas atividades é que permitem a alocação eficiente dos recursos públicos e a accountability (prestação de contas, controle social e responsabilização) sobre os tomadores de decisão e executores das políticas públicas.

Mais uma vez, o principal marco regulatório para APP foi estabelecido como política de governo, em decreto presidencial. O Decreto nº 10.411 de 2020, citado na introdução desse artigo, regulamenta a análise de impacto regulatório (AIR, avaliação ex ante da implantação da política pública) prevista superficialmente em artigos das Leis nº 13.848, de 2019 (gestão, a organização, o processo decisório e o controle social das agências reguladoras) e nº 13.874, de 20 de setembro de 2019 (Declaração de Direitos de Liberdade Econômica), também supracitadas.

É impossível a realização de AIR ou APP de forma adequada sem dados oficiais atualizados e confiáveis. O Estado Brasileiro tem enormes desafios a superar na governança das políticas públicas. O Governo Federal, o Congresso Nacional e a sociedade não podem ser furtar à importante responsabilidade de debater a atualização do marco regulatório para instituição de um novo sistema nacional de informações oficiais, estatísticas e geográficas, essenciais para se conhecer o caminho do desenvolvimento sustentável que tanto desejamos trilhar.

*Publicado originalmente no portal jota.org em 28/10/2020.

Link original: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/estatisticas-e-geoinformacao-28102020

 

Confira abaixo a bibliografia que serviu de apoio para a construção deste artigo:

 

SOARES, Fabiana de Menezes; KAITEL, Cristiane Silva; PRETE, Esther Külkamp Eyng (Orgs). Estudos em Legística. Tribo da Ilha. Florianópolis: 2019 (Ebook). Disponível em: <https://www.direito.ufmg.br/wp-content/uploads/2019/10/Miolo_Estudos-em-Legi%CC%81stica-Final2.pdf>.

Webinar “O Uso do Georreferenciamento nos Processos Decisórios”, organizado pelo Observatório para a Qualidade da Lei, da UFMG. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=5sZ7KWKpfjc>. Acesso em julho de 2020.

Webinar “Sistema Nacional de Informações Oficiais: desafios da Estatística e da GeoInformação”, realizado em setembro de 2020. Disponível em: <http://sindilegis.org.br/sistema-nacional-de-informacoes-oficiais-desafios-da-estatistica-e-da-geoinformacao-e-tema-do-proximo-cafe-com-politica/>;

Valor Econômico “Falta de Integração de base de dados desafia a fiscalização”, veiculada em 18 de outubro de 2020. Disponível em: <https://valor.globo.com/agronegocios/noticia/2020/10/19/falta-de-integracao-de-bases-de-dados-desafia-fiscalizacao.ghtml>.