Por Fernando Veiga Barros
Consultor legislativo do Senado Federal

Muito se fala sobre a desigualdade e a injustiça, no Brasil. Sobre a concentração de renda e riqueza e a propósito das iniquidades que assolam dezenas e dezenas de milhões de brasileiros.

Para verificar o que realmente se passa, vamos dar uma rápida olhada nos números do imposto sobre a renda das pessoas físicas. Os dados tributários são publicados pela Receita Federal do Brasil (RFB). Dizem respeito às declarações do imposto sobre a renda das pessoas físicas, relativas ao ano de 2018 – o último ano que, dessa série, logrou publicação. Os dados sobre a renda estão organizados em centis – divididos em 100 grupos que representam, cada um, 1% de todos os contribuintes declarantes. O primeiro centil é o dos contribuintes de menor renda. O último, o dos de maior. Quer dizer: do primeiro ao último centil, o nível de renda dos contribuintes cresce paulatinamente – às vezes de forma gradual, outras vezes abruptamente. Ao todo, foram 29.848.944 declarantes, significando que, em cada centil, figuram 298.488 pessoas.

Que dados das declarações são publicados? Os grandes grupos de dados são estes: os rendimentos, as despesas dedutíveis, os bens e direitos, as dívidas e ônus reais e o imposto devido.

Os rendimentos classificam-se em três grupos. No primeiro grupo, figuram os rendimentos sobre os quais incide a tributação. Normalmente, são os rendimentos do trabalho: salários, aposentadorias, pensões, etc. No segundo grupo, os rendimentos tributados exclusivamente na fonte. O significado disso é muito simples: quando tributados apenas na fonte, esses rendimentos não se somam a outros que hajam sido percebidos, para efeito da determinação da alíquota de incidência do imposto de renda. Quer dizer: os contribuintes com rendimentos tributados apenas na fonte beneficiam-se de alíquotas relativamente menores que os contribuintes tributados por rendimentos como, por exemplo, os do trabalho. Potencialmente, isso torna o imposto de renda menos progressivo ou, de outro modo, mais regressivo. Finalmente, no terceiro grupo, figuram os rendimentos isentos. Que rendimentos são isentos? Lucros distribuídos e dividendos, rendimentos de sócio ou titular de média empresa ou de empresas de pequeno porte e outros rendimentos assim definidos no âmbito da legislação tributária.

Entre as despesas dedutíveis figuram as com previdência, dependentes, instrução, saúde, pensão alimentícia e livro-caixa. Todas elas, à exceção do livro-caixa, são autoelucidativas, dispensando maiores explicações. Vale, portanto, apenas dizer que as deduções de livro-caixa são as despesas que, pagas com rendimentos de trabalho não assalariado, digam respeito a eventos como remunerações e emolumentos pagos a terceiros ou como os pagamentos necessários à percepção da receita e à manutenção da fonte produtora de receita. As despesas dedutíveis, todas elas, são abatidas dos rendimentos que, tributáveis, sofrem a incidência do imposto de renda.

Os bens e direitos, por sua vez, contemplam quatro categorias de ativos. Essas categorias são as seguintes: os bens imóveis, os bens móveis, os ativos financeiros e os demais bens e direitos.

As dívidas e ônus reais representam as obrigações assumidas pelos contribuintes. São seus passivos exigíveis, na forma de empréstimos e financiamentos, promessas de pagamento, etc. Abatidas dos bens e direitos, permitem entrever, teoricamente, o patrimônio líquido do contribuinte.

No Brasil, em função da pobre concepção econômica de muitos de nossos sistemas e modelos, os contribuintes, em geral, não registram bens e direitos de natureza previdenciária, somente se desfrutarem de plano de previdência complementar. Exatamente por isso, é incompleto, falho ou impreciso o conceito de patrimônio líquido pessoal, pois a maioria esmagadora dos contribuintes está impedida de ver reconhecidos e quantificados seus direitos econômico-previdenciários básicos. Em contrapartida, muitos dos contribuintes de maior renda não apenas podem e devem reconhecer e declarar seus direitos previdenciários complementares, mas, muitas vezes, são beneficiados por uma intrincada teia de incentivos e benefícios fiscais, ficando os rendimentos derivados desses ativos, muitas vezes, até mesmo isentos da tributação.

O imposto devido, por fim, é o valor do tributo que, calculado sobre os rendimentos passíveis de tributação, deve ser pago em relação ao exercício financeiro de declaração da renda. Naturalmente, abatem-se do valor devido aqueles já pagos, pelo contribuinte, a título de imposto, tendo por fato gerador a renda percebida no ano-calendário da declaração.

Bem, continuando, vamos utilizar o conceito de Renda Bruta 2 (RB 2) para a nossa análise, conceito esse desenvolvido pela própria RFB. Esse conceito está definido nos termos da planilha III, que consta do arquivo Excel, acessível por meio do endereço eletrônico abaixo. Esse conceito organiza o universo de contribuintes a partir da soma de todos os rendimentos: os efetivamente tributáveis, os sujeitos à tributação exclusiva e os isentos. É o conceito mais abrangente e, em nossa concepção, o mais correto, pois oferece a precisa dimensão de toda a renda percebida pelo contribuinte.

Não se deve confundir isenção com imunidade. Na isenção, os rendimentos sujeitam-se à incidência do tributo, mas o crédito tributário não é formado, devido ou pago. Na imunidade, que tem origem constitucional, sequer há matéria tributável e, portanto, inexiste incidência do tributo ou, mesmo, o surgimento de qualquer obrigação tributária. Portanto, o conceito de renda bruta RB 2 é correto e preciso ao somar, como renda tributável, todos os rendimentos do contribuinte: os efetivamente tributados, como os do trabalho, e os isentos, como os de participação em lucros e os dividendos.

A realidade que se desenha é dantesca. Que realidade é essa? De extrema concentração de renda e riqueza. Mas, não apenas de concentração de renda e riqueza. É também realidade de iníqua tributação. A análise permite ver, claramente, que a legislação tributária contraria os mais comezinhos princípios em vigor, a começar pelos da justiça fiscal e da capacidade contributiva. No caso específico do imposto sobre a renda, verifica-se, ainda, que o tributo é manejado regressivamente, produzindo e reproduzindo, continuamente, um quadro de profunda, e ponha profunda nisso, concentração de renda.

Vamos aos números:

1) o último centil (100º centil, o dos de maior renda), formado por 298.488 declarantes, num universo de quase 30 milhões, concentra 19,1% de toda a renda declarada por pessoa físicas, no Brasil;

2) contraditoriamente, esse mesmo centil (o 100º centil, o dos de maior renda) é o que exibe a menor alíquota efetiva de imposto de renda, no país – de apenas 5,6% –, contra, por exemplo, alíquota efetiva de 13,4%, exibida pelo antepenúltimo centil (o 98º centil), que é a alíquota efetiva mais alta entre as suportadas por todas as classes de renda do Brasil;

3) a razão para uma alíquota efetiva tão baixa, considerando que o 100º centil é o de maior renda do país, está no fato de que 71,7% da renda desse grupo de contribuintes são considerados, pela legislação em vigor, como rendimentos isentos;

4) os mais importantes rendimentos isentos são os de participação em lucros e de dividendos, seguidos por aqueles classificados como “outros rendimentos isentos”, assim consideradas as doações, as pensões e algumas remunerações de investimentos em ativos financeiros;

5) naturalmente, esse perfil de tributação interfere com a velocidade de acumulação de ativos por parte do grupo de contribuintes de maior renda. O último centil (o dos contribuintes de maior renda no Brasil) concentra nada menos do que 30,9% de todos os bens e direitos declarados, por pessoas físicas, no Brasil. São R$2,9 trilhões em bens e direitos, num total de R$9,3 trilhões. Quer dizer: 1% de todos os contribuintes detém 30,9% de todos os bens e direitos, estando a maior parte desses bens e direitos (75,8%) concentrada em ativos financeiros;

6) do total da renda declarada por todos os contribuintes brasileiros, no valor de R$2,5 trilhões de reais, o último centil (1% de maior renda no país) concentra R$0,5 trilhão (cerca de R$500 bilhões em renda pessoal);

7) a renda média anual desse centil (1% de maior renda no país) é de mais de R$1,6 milhão, e a maior renda pessoal, declarada em 2018 por um único contribuinte, foi superior a R$1,2 bilhão.

O quadro de concentração de renda e riqueza, combinado a uma estrutura de tributação altamente regressiva, é ainda pior do que o descrito acima. Fizemos a análise dos números no interior do grupo de contribuintes que perfaz o 100º centil – o das pessoas de maiores rendimentos e riqueza, no Brasil. Os 298.488 contribuintes desse grupo foram divididos em 10 subgrupos de 29.849 pessoas cada um, e, depois, o último subgrupo (o das 29.849 pessoas de maiores rendimentos), dividido em outros dez, cada um formado por 2.985 pessoas.

Aos números, novamente:

1) as 29.849 pessoas de maiores rendimentos, no Brasil, ostentam, individualmente, renda anual média de R$7,7 milhões, com esse grupo amealhando, em seu conjunto, renda anual total de R$230,0 bilhões. Essas pessoas representam 0,1% de todos os contribuintes, pessoas físicas, do Brasil;

2) esse grupo, das 29.849 pessoas de maiores rendimentos, no Brasil, pagou alíquota efetiva de imposto de renda da ordem de meros 3,1%, em 2018;

3) o mesmo grupo, das 29.849 pessoas de maiores rendimentos, no Brasil, detém ativos de R$1,5 trilhão, o que representa 16,4% de todos os ativos declarados, em 2018, no Brasil;

4) no interior desse grupo de 29.849 pessoas de maiores rendimentos, há o subgrupo das 2.984 pessoas mais abastadas do país. Essas quase 3 mil pessoas representam 0,01% de todos os 30 milhões de contribuintes, pessoas físicas, do Brasil;

5) cada um desse quase 3 mil contribuintes ostenta renda média individual, em 2018, de R$35,3 milhões;

6) a maior renda declarada, individualmente, em 2018, é de R$1,2 bilhão, e a menor renda declarada, individualmente, de R$2,5 milhões;

7) os quase 3 mil contribuintes de maior renda, no Brasil, somam rendimentos, em 2018, de cerca de R$105,2 bilhões;

8) embora os rendimentos totais, desse grupo das quase 3 mil pessoas de maiores rendimentos, tenha sido de R$105,2 bilhões, o imposto devido foi de apenas R$2,1 bilhões, perfazendo alíquota efetiva média do imposto de renda, em 2018, de irrisórios 2,0%;

9) nesse grupo das quase 3 mil pessoas de maior renda, os rendimentos isentos perfazem 83,5% de toda a renda bruta declarada (RB 2), impulsionados por ativos financeiros declarados de R$607,8 bilhões;

10) esse grupo das quase 3 mil pessoas de maior renda detém, em 2018, 7,3% de todos os bens e direitos declarados, no Brasil, dos quais cerca de 90% são compostos por ativos financeiros.

Quer dizer: há explicações tributárias, à saciedade, para as agruras econômicas e fiscais que o Brasil enfrenta. Claramente, o sistema tributário tem sido manejado para favorecer diminutos, mas poderosos, grupos de contribuintes. Em contrapartida, esse mesmo sistema tem penalizado os rendimentos do trabalho, impiedosa e rigorosamente tributados por um sistema de alíquotas comparáveis às mais severas do mundo. A par disso, o sistema é complexo, por vezes confuso e extremamente opaco, não permitindo que a realidade da tributação seja conhecida, compreendida e avaliada por todos.

Enquanto a propaganda midiática busca fazer acreditar que a saída para a crise reside, basicamente, em arranjos precários e sem grande sentido econômico, como o teto de gastos ou reformas que não atacam os verdadeiros problemas, a administração da receita pública, principalmente a tributária, segue o caminho de uma nação que ainda não compreendeu, inteiramente, o significado de democracia econômica. O sistema tributário em vigor afigura-se não apenas irracional e sumamente injusto, mas, principalmente, contrário aos princípios constitucionais que deveriam informar a instituição e a cobrança de todo e qualquer tributo.

Historicamente, todas as propostas de reforma visam à manutenção desse status quo. Palavras de ordem, como “marajás” e “privilegiados”, servem muito bem ao propósito de ocultar as reais iniquidades do sistema, permitindo não apenas a produção, mas, também, a contínua reprodução dos desequilíbrios e da concentração de renda e riqueza.

Se você deseja enfronhar-se nos números, não hesite em procurá-los no sítio da RFB, em Distribuição da Renda por Centis.

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