Em fevereiro, trabalhadores baianos contratados por três vinícolas de Bento Gonçalves (RS) foram libertados pelo Ministério Público do Trabalho (MPT). Eles estavam vivendo em situação análoga à escravidão. Episódio similar foi retratado em Terras do Sem Fim, romance de Jorge Amado.
No livro, os opressores eram latifundiários baianos (que lutavam entre si) e a história se passava na lavoura cacaueira de Ilhéus. Mas o método de exploração usado na Bento Gonçalves de 2023 era o mesmo retratado no romance de 1943. Nos dois casos, os agricultores trabalhavam em ritmo desumano, pagavam caro por comida, e, em vez de receber salários, acumulavam dívidas que os escravizavam.
As vinícolas infratoras são de propriedade de bolsonaristas. Michelle Bolsonaro teve ou tem vínculo com uma delas. Por que não estou surpreso? Porque Jair Bolsonaro nunca fez segredo do seu apoio a empresários prepotentes que se julgam acima das leis. Os escravagistas gaúchos não são tão diferentes dos mineradores que invadiram terras indígenas e provocaram o genocídio ianomâni.
Bolsonaro defendeu várias vezes empresários autuados por escravizar trabalhadores. E criticou as equipes de fiscalização do MPT que libertaram os escravos. Michel Temer não ficou muito atrás. Paralelamente, o ministro Paulo Guedes tentou desmontar a fiscalização dos direitos trabalhistas que sobreviveram à maré ultraliberal do pós-Impeachment.
Li Terras do Sem Fim quando era adolescente. É um grande livro. Mas devo confessar que discordei da caricatura que o escritor baiano fez dos coronéis. No Piauí da minha infância, coexistiam bons proprietários rurais e tipos autoritários e prepotentes. O jovem que fui duvidou da existência de latifundiários cruéis a ponto de escravizar agricultores.
Terras do sem Fim está entre os livros de Jorge Amado que mais me impressionaram. Ao recordá-lo, me entristeço de ver que o problema social denunciado 80 anos atrás ainda persiste no Brasil de hoje, ainda por cima em uma região de alta renda per capita.
A Região Sul, uma das mais desenvolvidas do Brasil, está se tornando, salvo honrosas exceções, um enclave de intolerância, racismo e fascismo. Nos últimos anos, os três Estados sulistas me decepcionaram profundamente.
O Paraná pariu os fascistas da Lava Jato, que elegeram Bolsonaro em 2018 e tentaram reelegê-lo em 2022. Santa Catarina foi palco de várias manifestações nazistas, e a maior reação que elas suscitaram dos políticos locais foi a cassação da deputada que as denunciou. Por último, o caso recente das três vinícolas gaúchas, Aurora, Salton e Garibaldi, que foram pegas usando mão de obra escrava em pleno século XXI.
O escândalo das vinícolas ganhou maior repercussão porque as empresas indiciadas receberam apoio de parte da comunidade.
Sandro Fantinel. vereador de Caxias do Sul, e o Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves (CIC) defenderam os escravistas e atribuíram a culpa pelo incidente, respectivamente, à indolência dos baianos e à vagabundagem incentivada pelo programa Bolsa Família.
Às vezes os vilões do mundo real conseguem ser mais abjetos do que os da ficção.
O Brasil tão cedo não vai superar suas raízes escravistas. Os primeiros escravos africanos aqui chegaram em 1530, e a Lei Áurea só foi assinada em 1888. Nossa história está maculada por três séculos e meio de escravidão. E tudo indica que o flagelo persiste nos dias de hoje. Entre os trabalhadores brasileiros resgatados da escravidão nos anos recentes, 83% se autodeclararam negros.
Petronio Portella Filho
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